Sarah Raíssa Pereira de Castro tinha apenas 8 anos quando foi internada no Hospital Regional de Ceilândia, no Distrito Federal, com complicações graves de saúde após inalar desodorante em spray. Ela chegou a ser reanimada pela equipe médica, mas não resistiu e morreu no dia 13 de abril. Dias antes, Brenda Sophia Melo de Santana, de 11 anos, havia tido o mesmo destino, em Bom Jardim, no Agreste Pernambucano. Não são casos isolados, tampouco as duas meninas decidiram, por iniciativa própria, atentar contra suas vidas. Elas foram influenciadas por um “desafio” proposto em plataformas digitais. A exposição de crianças e adolescentes a esse tipo de conteúdo cresceu nos últimos anos, e o País está colhendo os frutos amargos desse fenômeno. De acordo com o mais recente Atlas da Violência, o índice de suicídio entre crianças e jovens de 10 a 19 anos aumentou 42,7% nos últimos dez anos, entre 2013 e 2023. São múltiplas as causas que levam a esse cenário desolador, mas a exposição a conteúdos nocivos em plataformas digitais é apontada pelos especialistas como um pivô.

Diante da situação alarmante, o presidente Lula aproveitou uma viagem à China, em meados de maio, para tratar do tema. “Perguntei ao companheiro Xi Jinping se ele poderia enviar ao Brasil alguém de sua confiança para que discutíssemos a questão digital, sobretudo o ­TikTok”, revelou, em entrevista, antes de embarcar de volta ao Brasil. Na ocasião, a primeira-dama Janja da Silva contou ao líder chinês sobre o episódio da criança de 8 anos, e alertou sobre os riscos aos quais esse público está exposto nas redes sociais. Dias depois, a empresa responsável pelo TikTok enviou uma carta ao Itamaraty para abrir um canal de diálogo e cooperação. Pena que o noticiário nativo preferiu espalhar uma fofoca a aprofundar esse debate…

No ano passado, o cyberbullying passou a ser tratado como crime no Código Penal, com pena que pode chegar a quatro anos de reclusão, além de multa e outras sanções. Ainda assim, não faltam redes sociais e fóruns online a impulsionar práticas violentas. Em uma rápida pesquisa por plataformas como o Discord, ­Telegram e o próprio TikTok, é possível identificar “desafios” que induzem o público à autoasfixia, autolesão ou mesmo atos de violência contra terceiros. Para especialistas, regular as plataformas para impedir a veiculação desse tipo de conteúdo é mais eficaz do que a mera criminalização.

“Há indícios suficientes para demonstrar que esse aumento de suicídios tem forte correlação com o aumento também desse conteúdo no ambiente digital”, avalia o secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação da Presidência, João Brant. Segundo ele, o governo Lula tem “trabalhado em diversas frentes” para lidar com esse problema. No entanto, “falta, de fato, um marco regulatório para as plataformas digitais que imponha mais responsabilidade a essas empresas em relação ao conteúdo ilegal e danoso que circula nesses espaços”.

A psicóloga Juliana Cunha, diretora de projetos especiais da ONG SaferNet, acredita que tão importante quanto punir esses crimes é criar um ambiente de segurança digital. “Promover o diálogo no ambiente escolar e impulsionar a cidadania digital são formas eficazes de prevenção”, avalia. Segundo ela, “quando o suicídio acontece, é resultado de uma combinação de fatores, e inclui aspectos individuais e familiares”. Ela alerta, porém, que, “sem dúvida, o consumo de conteúdos de apologia e dos que ensinam formas de se matar, e mesmo os grupos que incentivam o suicídio, pode influenciar”.

Pesquisadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde da Fiocruz Bahia, Flávia Alves constatou que a taxa de suicídios entre jovens cresceu 6% ao ano no Brasil, entre 2011 e 2022. Já as notificações de autolesões entre pessoas de 10 a 24 anos aumentaram 29% a cada ano. Hoje vinculada à ­Harvard Medical School, a psicóloga afirma não ter encontrado uma resposta simples para explicar esse fenômeno. “Vulnerabilidade social e falta de acesso a direitos básicos, como moradia digna, alimentação e educação de qualidade, são fatores a ser levados em conta”, afirma. A ausência de uma rede robusta de assistência e prevenção dessas práticas também é apontada como um ponto relevante. “Até hoje o Brasil não tem um plano nacional de prevenção ao suicídio.” Esses elementos, somados à exposição a conteúdos violentos nas plataformas digitais, formam uma tempestade perfeita para atingir a autoestima de crianças e jovens. “Resolver esse problema passa por uma mudança estrutural de garantia de direitos.”

A taxa de suicídios entre brasileiros de 10 a 19 anos cresceu 42,7% em dez anos, segundo o Atlas da Violência 2025

De acordo com a advogada Denise Auad, especialista em infância e professora da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, “o cyberbullying tem um alcance muito mais profundo do que o bullying escolar”. Ela observa que o adolescente está em uma fase do desenvolvimento no qual busca validação dos pares para construir sua própria identidade. “Fazer uma brincadeira que coloque outro em risco, para se destacar como o mais forte, faz parte da adolescência”, diz. Justamente por isso Auad classifica como “criminosas” as redes sociais que, cientes dessa vulnerabilidade, “permitem a propagação de discursos de ódio ou desafios violentos para os jovens interagirem, uma estratégia para aumentar o engajamento dos usuários e seus lucros”. Os responsáveis por tais práticas devem ser identificados e punidos, avalia a especialista. “Para que isso seja possível, é necessário pensar na regulação das redes, algo que o Brasil está com dificuldade de fazer.”

Ergon Cugler, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas da FGV, observa que o ambiente digital representa um risco para crianças e adolescentes muito antes de chegar ao extremo de conteúdos violentos. “Uma criança está em processo de formação de caráter, de visão de mundo, de percepção sobre o próprio corpo. Ao ser exposta a conteú­dos que pautam um padrão de moda, de beleza ou de consumo inalcançáveis, ela pode sentir-se muito vazia, e consequentemente, mais vulnerável a ser capturada por discursos de ódio, xenofobia, racismo e misoginia.” Ele destaca uma pesquisa da organização Think Wise, onde foi identificado que 84% dos usuários do TikTok com idade entre 13 e 24 anos tiveram acesso a vídeos considerados violentos, perturbadores e humilhantes. Desses, 24% alegaram ter se sentido incentivados a atacar verbalmente outras ­pessoas após consumirem esse conteúdo. Esses dados demonstram “urgência em regulamentar essas plataformas”. •

Publicado na edição n° 1363 de CartaCapital, em 28 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Janja tem razão’

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Last Update: 22/05/2025