No domingo 18, Israel colocou em marcha a operação “Carruagens de Gideão”, uma ofensiva desenhada para a conquista permanente e recolonização da Faixa de Gaza. Seus objetivos foram delineados pelo próprio premier Benjamin Netanyahu na ocasião da aprovação do plano, em 5 de maio: consolidar uma presença permanente do exército no enclave palestino e incentivar o deslocamento da maior parte da população para o que chamou de “zona humanitária”, controlada pelas forças israelenses.
Os ataques resultaram, segundo registros de agências locais, em ao menos 140 mortes. A rede Al Jazeera reportou que o porta-voz de língua árabe do exército israelense, Avichay Adraee, deu ordens de evacuação aos palestinos na parte central de Gaza, alertando sobre o iminente bombardeio. Na rede social X, ele indicou que os moradores da região sul de Deir al-Balah e dos bairros de Ja’afrawi, Al-Sawar, Abu Haddab e Al-Satar deveriam ser deslocados. Um dia depois, na segunda-feira 19, Israel ordenou a expulsão dos residentes de Khan Younis – a segunda maior cidade palestina da Faixa de Gaza antes dos ataques do Hamas e da invasão israelense, em outubro de 2023. O destino de todos era o deslocamento forçado rumo ao oeste, em direção à região de Al-Masawi – a chamada “zona humanitária”.
O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, em relatório publicado em 14 de maio, informou que “o bloqueio, as novas ordens de deslocamento e os bombardeios contínuos – inclusive contra tendas, hospitais e escolas – continuam a provocar um número crescente de vítimas, deslocamentos e níveis extremos de privação em toda Gaza”.
O bloqueio total, imposto em 2 de março, já durava quase três meses, acumulando privações que podem levar centenas de milhares de civis à morte por inanição. Até o início de maio, o Escritório da ONU alertava que 91% dos 2,1 milhões de habitantes de Gaza estavam sob alto risco de insegurança alimentar – ou seja, fome moderada (nível 3 do IPC). Desse total, mais de 1 milhão enfrentariam emergência alimentar aguda (nível 4) e cerca de 470 mil pessoas já estariam sob risco de fome catastrófica (nível 5), ou seja, sem acesso algum a alimentos. Na segunda-feira 19, Tom Fletcher, chefe da missão humanitária da ONU em Gaza, alertou em entrevista à Radio 4 da BBC que “14 mil bebês em Gaza poderiam morrer nas próximas 48 horas, caso caminhões contendo comida e nutrição para bebês não alcancem comunidades na Faixa de Gaza”.
O cerco durou 78 dias e deixou 470 mil palestinos sob risco de morte por inanição
A partir desse momento, países e organizações começaram a se manifestar contra a crise humanitária provocada por Israel. O próprio Netanyahu, que ainda é alvo de uma ordem de prisão emitida pela Corte Penal Internacional, admitiu que não seria possível aceitar uma situação de fome extrema “por razões práticas e diplomáticas”. Segundo ele, até mesmo os “amigos mais próximos no mundo” advertiram que imagens de civis famélicos poderiam comprometer seus esforços políticos no cenário internacional.
A principal razão diplomática para a mudança de posição de Israel foi a pressão do governo Trump. Entre os dias 13 e 16 de maio, o presidente dos Estados Unidos realizou uma visita ao Golfo Pérsico, deixando Israel fora do roteiro. Ao encerrar a viagem, em Abu Dabi, alertou: “Estamos olhando para Gaza e vamos cuidar disso. Muitas pessoas estão passando fome”. Já no domingo seguinte, enquanto a operação “Carruagens de Gideão” esmagava a população palestina, o enviado especial dos EUA para o Oriente Médio, Steve Witkoff, afirmou que Washington não gostaria de ver uma crise humanitária em Gaza e “não permitirá que ocorra sob o presidente Trump”. Somente então Netanyahu autorizou a entrada de suprimentos.
A União Europeia também começou a se mover. Na terça-feira 20, o bloco decidiu rever o Acordo de Associação com Israel – o primeiro gesto concreto desde o início do bloqueio total de Gaza. Caso a investigação em curso confirme crimes de guerra ou genocídio, diferentes sanções poderão ser aplicadas. Já os governos da França, Canadá e Reino Unido divulgaram uma carta conjunta em que consideram a possibilidade de impor sanções ao governo israelense.
A CartaCapital, Rula Jamal, advogada de direitos humanos e codiretora do Instituto Palestino para Diplomacia Pública (PIPD), interpreta essas ações como uma mudança de postura: “Eles executaram ações práticas, não é mais apenas uma questão de retórica”. Ela pondera que, embora o projeto do Estado de Israel continue fortemente conectado aos interesses europeus – e ainda mantenha apoio dos EUA –, a postura de Trump sugere um realinhamento de prioridades. “A atual administração está mais interessada em investimentos e no corte de custos externos, o que pode contrariar o apoio irrestrito ao genocídio contínuo”, avalia. Segundo ela, o acordo entre o Hamas e os EUA para a libertação de Edan Alexander, na semana passada, bem como a exigência de Trump por mais ajuda humanitária, sinalizam uma mudança de tom.
Trump pode estar adotando uma política externa mais transacional, focada em comércio e contenção de gastos no exterior. Ou, então, pode estar tentando equilibrar sua atuação com os interesses dos governos árabes, que publicamente exigem cessar-fogo e o fim do extermínio em Gaza. Seja como for, a mudança de postura dos aliados israelenses representa apenas um pequeno passo diante da devastação em curso. Além da fome generalizada, há o registro de 52.928 mortos desde outubro de 2023 – número que pode chegar a 300 mil, segundo estimativas da revista The Lancet, que consideram também mortes indiretas causadas por fome e epidemias. Cerca de 70% das casas e edifícios de Gaza foram destruídos ou danificados. E muitos palestinos simplesmente não têm mais para onde voltar. •
Publicado na edição n° 1363 de CartaCapital, em 28 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A fome como arma’