Favorecido por seus ativos naturais e pioneiro na busca por uma matriz energética limpa e renovável, o Brasil tem potencial não apenas para zerar suas emissões de gases de efeito estufa, mas também para tornar-se a primeira nação carbono negativo do planeta. A aposta é de João Paulo Capobianco, secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente. A seguir, ele explica por que ainda acredita que a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas – marcada para novembro, em Belém – pode entrar para a história como a “COP da Virada”, mesmo após o anúncio do presidente Donald Trump de que os EUA deixarão o Acordo de Paris. A íntegra da entrevista, em vídeo, está disponível no canal de CartaCapital no YouTube.
CartaCapital: O MapBiomas apontou uma redução de 32% no desmatamento no Brasil em 2024. Houve também uma queda expressiva no Cerrado, que continua sendo o bioma mais devastado, mas registrou uma redução da área desmatada superior a 41%. O que explica esse avanço?
João Paulo Capobianco: Esse é o resultado de uma grande mobilização iniciada em 2023, quando o presidente Lula decidiu criar uma comissão interministerial permanente de prevenção e controle do desmatamento. Além disso, foram elaborados planos específicos para todos os biomas. Logo no primeiro ano de gestão, tivemos bons resultados na Amazônia e na Mata Atlântica, mas o problema persistia no Cerrado, onde o desmatamento chegou a crescer. Com o lançamento de um novo plano para esse bioma, foi possível organizar a atuação nos estados que concentram as maiores áreas desmatadas, aqueles que integram a região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), pressionada pela expansão da fronteira da soja. Sob a liderança da Casa Civil, reunimos as autoridades estaduais para planejar um trabalho conjunto, cujos frutos começamos a colher agora.
“A redução do desmatamento tem impacto imediato nas emissões do País”
CC: Como o senhor avalia o projeto de flexibilização do licenciamento ambiental, que está avançando no Senado?
JPC: A atual versão desse projeto tem muitos problemas. De certa forma, ela inverte toda a lógica construída no Brasil desde a Constituição de 1988, que buscou estabelecer parâmetros nacionais para organizar o licenciamento ambiental. A proposta esvazia as atribuições dos conselhos de meio ambiente e abre brechas para que cada unidade da federação tenha uma regra diferente. Lembra de todo o esforço que fizemos para acabar com a guerra tributária entre os estados? Pois bem, agora pode haver uma atração de empreendimentos não por benefícios fiscais, mas por uma legislação mais frouxa para atividades que geram impacto ambiental.
CC: Mais frouxa em que sentido?
JPC: O texto prevê, por exemplo, um processo de licenciamento por adesão e compromisso. Ou seja, o próprio empresário define qual é a licença necessária e se credencia para obtê-la. Se for um empreendimento de baixo ou médio impacto, ele estará dispensado da análise feita pelo órgão público, que hoje tem a responsabilidade de realizar todos os estudos, avaliar os impactos e apresentar as medidas mitigadoras ou compensatórias. Teremos um conjunto enorme de empreendimentos sendo implementados no Brasil sem verificação prévia, sem análise adequada dos impactos e sem a exigência de ações para reduzi-los. No fundo, esse Projeto de Lei, sob a justificativa de simplificar o processo de licenciamento ambiental, irá dificultá-lo, pois haverá uma grande judicialização de casos.
CC: Os senadores não parecem preocupados com a insegurança jurídica…
JPC: Deveriam estar, pois os impactos ambientais de determinado empreendimento não deixarão de existir só porque a legislação ficou mais permissiva. Há ainda outro aspecto preocupante nesse Projeto de Lei: o texto retira a responsabilidade do empreendedor sobre os impactos indiretos. Imagine, por exemplo, a construção de uma grande hidrelétrica, como Belo Monte. Um empreendimento desse porte muda completamente a dinâmica da região: provoca aumento populacional nas cidades vizinhas, pressiona os serviços de saúde, gera a necessidade de ampliar a rede de esgoto, de pavimentar ruas… Se o empresário não for mais responsabilizado por isso, quem terá de pagar a conta seremos nós, cidadãos, por meio dos impostos. Uma vez instalado o problema, o ônus recairá sobre o Estado.

Ponderações. Não está em discussão se o País deve ou não extrair petróleo, e sim o impacto da exploração. Já o PL do licenciamento ambiental é visto como um “retrocesso” – Imagem: Agência Petrobras, Edilson Rodrigues/Agência Senado e iStockphoto
CC: O senhor costuma repetir que o Brasil pode ser o primeiro país carbono negativo. Por que tanta confiança?
JPC: Primeiro, pelos nossos ativos naturais. Como o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro costuma dizer, passamos muito tempo acreditando que era preciso destruir a natureza para obter progresso. E eis que a história, com sua peculiar ironia, agora nos exige justamente a natureza como passaporte para o futuro. É uma mudança de perspectiva, e estamos muito bem posicionados no cenário mundial. Temos uma das matrizes elétricas mais limpas do planeta. Isso não é resultado de uma decisão recente, diante das emergências climáticas. Há muito tempo o Brasil investe em energia renovável. Em breve, devemos ter excedente de eletricidade, o que nos torna ainda mais capacitados para produzir hidrogênio verde. O Brasil também é o país mais habilitado para desenvolver o SAF, o combustível sustentável de aviação. Além disso, temos a chance de corrigir um erro histórico e, ao fazer isso, obter uma vantagem. Hoje, o desmatamento é a nossa maior fonte de gases de efeito estufa. Basta diminuir a devastação dos biomas para ter uma redução imediata nas emissões, e é isso que estamos fazendo. Temos ainda muitas áreas degradadas pela pecuária no passado que podem ser recuperadas, tanto para a restauração de florestas quanto para o desenvolvimento de atividades agropecuárias de alta produtividade. Se conseguirmos avançar nessa linha, teremos a possibilidade não apenas de neutralizar as emissões, mas também de sequestrar mais carbono do que emitimos.
CC: Há quem veja uma contradição nas ações do governo, que aposta na transição energética, mas continua a investir na exploração de petróleo.
JPC: É necessário analisar essa questão sob dois aspectos, que não convém misturar. Uma coisa é o uso do petróleo na matriz energética brasileira ou para fins de exportação – e quem discute esse tema, no Brasil, é o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). Desde a COP28, em Dubai, os países buscam estratégias para reduzir o consumo de combustíveis fósseis. Isso pressupõe um arranjo internacional para eliminar essa fonte de energia, mas existe um caminho a ser percorrido. É um processo. O petróleo ainda é uma fonte de energia muito utilizada no mundo, é um recurso estratégico e é uma riqueza que o País possui. Não cabe ao Ministério do Meio Ambiente decidir sobre o uso ou não desse recurso, e sim avaliar os riscos ambientais da sua exploração – seja na Margem Equatorial, seja em qualquer outro local. Neste caso, temos uma atribuição. Mais que isso, uma responsabilidade.
CC: Qual é o problema da Margem Equatorial?
JPC: Há poucos estudos. Não foi realizada, por exemplo, a Avaliação Ambiental de Área Sedimentar, exigência estabelecida pelo próprio CNPE. Ela identifica áreas críticas ou muito sensíveis, que devem ser evitadas para proteger corais, migração de espécies ameaçadas, passagem de baleias… Nesse processo, também são analisadas as correntes marítimas e a estabilidade geológica, que são fundamentais para garantir a segurança das operações. Há muitos fatores envolvidos. Quem avalia a concessão de licenças são os técnicos, servidores que precisam considerar todos os requisitos legais antes de autorizar qualquer empreendimento. Repito: o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama não estão discutindo se o Brasil deve ou não explorar suas reservas de petróleo. O que está em questão é se há informações técnicas suficientes para liberar essa operação com segurança.
“A ideia é organizar um mutirão global pelo clima”, afirma Capobianco, ao prenunciar uma “COP da Virada”
CC: Em janeiro, Trump anunciou a retirada dos EUA do Acordo de Paris. Ainda dá para sonhar com uma COP mais ambiciosa nos compromissos?
JPC: A situação já era crítica antes de a maior economia do mundo deixar o Acordo de Paris. Isso tem impacto, claro, mas é importante lembrar que o federalismo norte-americano é muito forte. Os estados têm autonomia para manter políticas próprias. Além disso, grandes empresas fazem planejamento de longo prazo – com metas para 10, 20, 30 anos – e não costumam mudar de rota por conta de reviravoltas políticas. Continuarão investindo em fontes renováveis e na redução de emissões. Claro que seria melhor contar com os EUA plenamente engajados. Gostaríamos de ter o presidente Trump conosco na COP30, ajudando a enfrentar esse desafio. Mas, de certa forma, o país continuará presente no debate. E há outro fator decisivo: a crise climática se intensificou. O ano de 2024 foi o mais quente já registrado, com 1,55°C acima dos níveis pré-industriais. Nem mesmo os cientistas do IPCC previam uma aceleração tão rápida – esperavam que o limite de 1,5°C só fosse ultrapassado no fim da década.
CC: Qual deve ser o mote da COP no Brasil?
JPC: Acho que temos um ambiente favorável para aquilo que chamamos de “COP da Virada”. Partimos do reconhecimento de que já negociamos bastante, tomamos decisões importantes, aprovamos protocolos e acordos. Agora é a hora de implementar, porque não há mais tempo. Como anfitrião, o Brasil está trabalhando desde o ano passado para promover um esforço real de todas as partes na execução do que foi acordado. Já avançamos nisso no G20 e também estamos agindo no âmbito dos BRICS. O presidente Lula tem feito uma intensa articulação internacional, exercendo aquilo que chamamos de “diplomacia das NDCs”, os compromissos nacionais de enfrentamento das mudanças climáticas. Temos trabalhado para que os países se tornem mais ambiciosos. A ideia é organizar, de fato, um mutirão global pelo clima. •
Publicado na edição n° 1363 de CartaCapital, em 28 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Zerar é pouco’