A virtude de Lula: a arte de governar
por Michel Aires
Desde Platão e Aristóteles até a filosofia medieval cristã, o fim último da política era a realização da justiça e do bem comum. Essa imagem estava ligada à ideia de um cosmo ordenado e racional, a uma harmonia pré-estabelecida por Deus. Desse modo, o bom governante espelhava a imagem da virtude e da justiça, que deveria guiar os homens pensando no bem comum. A política surge, portanto, como expressão da virtude e da racionalidade humana. Contudo, essa imagem sempre contrastou com a realidade factual. Em todas as épocas foram sempre os fortes e poderosos que governaram por meios violentos e cruéis. A máscara da virtude, da bondade e da benevolência sempre foi um recurso usado por eles para subjugar e oprimir o povo. Essa foi e continua sendo sua astúcia para mascarar a realidade.
Maquiavel foi o primeiro a fazer cair a máscara dos opressores. Foi o primeiro a mostrar que o fundamento da política não pode ser buscado em Deus ou em qualquer valor transcendente fora das relações sociais. Não existe uma ordem ideal ou natural que a política deve realizar. Ao recusar essa visão metafísica, ele mostrou que a essência da política está fundamentada em dois sentimentos: o dos poderosos que desejam oprimir e comandar e o do povo que não deseja ser oprimido e comandado. A política surge, portanto, como um conflito irreconciliável entre o desejo de dominação e o desejo de liberdade. Como explica Chaui (2012, p. 460), “essa divisão evidencia que a cidade não é uma comunidade homogênea nascida da vontade divina, da ordem natural ou da razão humana. Na realidade, a cidade é tecida por lutas internas que a obrigam a instituir um polo superior que possa unificá-la e dar-lhe identidade. Esse polo é o poder político. Assim a política nasce das lutas sociais e é obra da própria sociedade para dar a si mesma unidade e identidade”.
Na sua obra O Príncipe, Maquiavel tratou a política de forma realista, como um saber prático, como uma forma de arte. É uma arte no sentido grego de tékhne, de um saber produzir, de uma habilidade para fazer algo. A política é uma arte, pois aquele que governa deve dar forma ao governo conforme sua astucia, conforme sua virtú. O Príncipe deve refletir sobre aquilo que está ou não está em seu alcance. Sobre aquilo que está em seu alcance, o governante deve agir racionalmente para fazer cumprir seus desígnios. Já aquilo que não está em seu alcance, o que depende do acaso (Fortuna), o governante deve saber prever, planejar e saber agir contra as circunstâncias, para fazer acontecer. Nesse sentido, o príncipe deve ter a virtú para dobrar a fortuna. O bom governante é aquele que de forma inteligente deve se adaptar as situações, desenvolvendo estratégias e racionalizando sua ação, para vencer o imprevisível. O bom governante, portanto, é aquele que prevendo a inundação é capaz de construir diques para impedir a cheia.
Lula está longe de ser “maquiavélico”, mas possui grande virtude para vencer a Fortuna. Se a política se estabelece como um conflito permanente entre os poderosos que querem oprimir e o povo que não quer ser oprimido, Lula sempre soube levar a bom termo esse conflito. Em um país dominado por uma direita poderosa, uma elite racista e conservadora, que sempre quis subjugar a classe trabalhadora, sem respeitar as regras, o estadista soube barrar esse ímpeto se aliando ao povo. Desse modo, ele foi capaz de conter o desejo de opressão e poder dos grandes. Como observa Chauí (2012, p. 460): “O verdadeiro príncipe é aquele que sabe tomar e conservar o poder e que, para isso, jamais se alia aos grandes, pois estes são seus rivais e querem o poder para si, mas deve aliar-se ao povo, que espera do governante a imposição de limites ao desejo de opressão e mando dos grandes”.
Maquiavel já nos ensinava que o governo é ilegítimo quando o poder dos grandes supera o do Príncipe e oprime o povo. O poder do Estado deve sempre ser maior que o poder dos poderosos. Caso isso não aconteça, surge a opressão, os conflitos, a miséria e a corrupção. Esse fato pode ser confirmado em toda a história do Brasil. Aqui os poderosos e as elites sempre governaram, usando sempre da astúcia e da mentira para impedir que governos populares chegassem ao poder. O público sempre foi entendido como o âmbito do privado.
A força e grandeza de Lula foi saber mediar esse conflito, aliando-se ao povo, mas sempre fazendo concessões as classes dominantes. O objetivo da política não é acabar com o conflito, pois isso seria impossível. Para Maquiavel, o conflito é parte constitutiva da vida política. O bom governante é aquele que é capaz de mediar os interesses em jogo, de decidir sem inviabilizar o conflito, fazendo concessões, resolvendo divergências e conciliando: “A vida social é para Maquiavel um campo de forças e só pode prosperar se essas forças de algum modo se equilibrarem. Eis assim o papel do governante: procurar e até mesmo forçar, se necessário, esse equilíbrio, contendo ora uma parte, ora outra, fazendo com que ora um, ora outro seja obrigado a ceder, de modo que todos tenham o seu desejo em parte, mas nunca totalmente realizado” (LIMONGI, 2006, p. 62).
O que podemos inferir das ideias políticas de Maquiavel é que o desejo de oprimir dos grandes e o desejo do povo de liberdade são dois princípios ontológicos da existência política, uma vez que expressa uma estrutura constante e necessária da existência coletiva em qualquer período, época ou lugar. Desse modo, a luta entre opressores e oprimidos é inexorável. Ela é parte do passado, do presente e da história futura da humanidade. Não podemos ser inocentes, esperando que um dia os opressores deixem de oprimir o povo. O objetivo da política para Maquiavel é institucionalizar o conflito. É necessário criar regras para domar esse ímpeto de dominação e opressão dos poderosos e impedir a revolta dos oprimidos, que pode desencadear em guerra civil.
A grande virtude de Lula é fazer todos os esforços para que a democracia não seja apenas formal, mas substancial. Ao fazer isso ele busca impedir que os poderosos oprimam o povo. As elites gostam apenas da democracia formal, pois ela funciona apenas no papel, estabelecendo as regras do jogo, por meio de procedimentos jurídicos e institucionais que organizam a vida política. As elites não se preocupam de maneira efetiva com a justiça social, a igualdade econômica ou o bem-estar social e coletivo. A economia ao se impor de forma totalitária ao corpo social e as suas instituições esvazia o sentido da política como escolha entre ações alternativas. Assim, a democracia formal beneficia apenas os poderosos, que possuem o poder econômico e político.
A democracia substancial, por outro lado, vai além das normas e procedimentos, uma vez que se preocupa com a vida efetiva dos indivíduos e da coletividade. O conceito de democracia substancial foi criado pelo filósofo político italiano Noberto Bobbio. Segundo essa concepção, a democracia deve ser um fim em si mesmo, que apresente de fato resultados sociais e econômicos, realizando o princípio democrático da igualdade entre os homens. Desse modo, a distribuição de riqueza, o combate a desigualdade, a universalidade da educação e a justiça social devem ser preocupações fundamentais do Estado de Direito. A política a partir desse ponto de vista deve ser, antes de tudo, um projeto de transformação social, que se preocupe com valores substantivos, como igualdade, equidade, justiça social e bem-estar social. Todos devem ter acesso a educação, ao emprego, a moradia, a saúde, a cultura e a participação política. Esses são valores inegociáveis.
Referências
Bobbio, Norberto. O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
CHAUÍ, Marilena. Convite a filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2012.
LIMONGI, Maria Isabel. Seis filósofos na sala de Aula. Vinicio de Figueredo (Org). São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2006.
MAQUIAVEL. O Príncipe: Escritos Políticos. São Paulo: Nova Cultural, 1998. (Pensadores)
Michel Aires – Professor do Instituto Federal do Mato Grosso do Sul
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