Em 2023, cerca de 14 mil meninas entre 10 e 14 anos deram à luz no Brasil. Pela legislação, toda gravidez nessa faixa etária é considerada resultado presumido de estupro, já que a Constituição reconhece que qualquer relação com menores de 14 anos é estupro de vulnerável — mesmo que haja alegação de “consentimento”.
Apesar disso, o aborto legal, garantido por lei nesses casos, foi realizado em apenas 1,1% das situações. A esmagadora maioria das crianças foi forçada a levar a gravidez adiante, mesmo quando houve manifestação de vontade contrária. Essa realidade escancara o desrespeito sistemático aos direitos mais básicos de vítimas de violência sexual.
Segundo a presidente da Associação de Obstetrícia de Rondônia, Ida Peréa Monteiro, uma das causas principais dessa violação é a falta de orientação adequada às vítimas e suas famílias sobre o direito ao aborto legal. A situação se agrava com a falta de estrutura hospitalar: o Brasil possui menos de 100 hospitais habilitados a realizar o procedimento em todo o território nacional.
O obstetra Olímpio Barbosa de Morais Filho, diretor-médico do Cisam (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), em Recife, denuncia a prática sistemática de omissão. Segundo ele, muitos profissionais alegam “objeção de consciência” para não realizar abortos legais, mas sequer cumprem a obrigação mínima de informar as vítimas sobre seus direitos:
“A objeção de consciência é relativa, não é absoluta. Mesmo com objeção, é dever do profissional informar a vítima sobre o direito à interrupção legal da gravidez. Mas, na prática, as portas são fechadas e essas meninas são abandonadas.”
O médico alerta ainda para o impacto de projetos de lei como o chamado “PL do estupro”, que busca restringir ainda mais o acesso ao aborto legal, especialmente em casos acima de 22 semanas. Isso, segundo ele, afetaria especialmente as vítimas mais jovens:
“Em cerca de 70% dos casos, o estuprador é alguém da família ou próximo. A menina muitas vezes demora a perceber a gravidez ou tem medo de denunciar. Quando busca ajuda, já é tarde — e o sistema nega o direito garantido por lei.”
O resultado é trágico: meninas forçadas a parir ou submetidas a abortos clandestinos, em condições perigosas e muitas vezes letais. Em diversos casos, os métodos usados envolvem objetos improvisados, como agulhas de crochê, resultando em infecções, hemorragias e morte.
O próprio parto, imposto a crianças ainda em desenvolvimento físico, representa grave risco à saúde. A taxa de mortalidade durante a gravidez entre meninas de 10 a 14 anos é de 50 a cada 100 mil, praticamente o dobro da registrada entre mulheres de 20 a 24 anos, segundo dados de saúde pública.
Enquanto isso, setores conservadores seguem atuando para restringir ainda mais o acesso ao aborto legal — transformando a vida de meninas vítimas de estupro em um verdadeiro campo de tortura institucional. O Estado, ao não garantir esse direito básico, naturaliza o estupro e impõe o castigo do parto forçado às suas vítimas mais vulneráveis.