Por Ângela Carrato*

Sucesso absoluto. Este é o balanço da viagem que o presidente Lula realizou à China.

Ele retornou com R$ 27 bilhões de investimentos no Brasil anunciados por empresas de lá, além de dezenas de acordos governamentais em áreas as mais diversas como infraestrutura, educação, ciência e tecnologia.

Uma mídia corporativa comprometida com a cobertura dos fatos, como diz ser a brasileira, teria por obrigação registrar esse sucesso, mostrando como vai de vento em popa o relacionamento não só do Brasil como da América Latina com o gigante asiático.

Mas o que ela fez? Minimizou, escondeu esse sucesso e, pior ainda, criou uma fake news com o objetivo de tratar do assunto de forma negativa, ao tentar transformar um sucesso em vexame diplomático.

O saldo altamente positivo da viagem de Lula foi substituído pela “notícia” da “saia justa” em que a primeira-dama, Janja, teria colocado Lula e a comitiva brasileira durante jantar na residência oficial do casal Xi Jinping.

Mesmo sendo um encontro fechado à imprensa, comentaristas da Globo News divulgaram que durante o jantar, Janja questionou Xi sobre a atuação da rede social chinesa TikTok no Brasil, em especial no papel negativo que desempenha junto a crianças e adolescentes.

De acordo com a “notícia” da Globo News, o relato foi de um participante do jantar, que teve seu nome mantido em off.

A partir desse momento, o assunto ganhou a mídia brasileira e na entrevista coletiva de Lula ao final da visita a Pequim, foi tema de questionamento do repórter do grupo Globo.

A resposta de Lula não poderia ter sido mais direta. Deixou claro que Janja não levantou a questão. A iniciativa partiu dele. Sua mulher apenas apresentou mais detalhes, por conhecer melhor do que ele questões ligadas às redes sociais.

Lula deixou claro também sua crítica pelo vazamento de uma conversa privada entre dois chefes de estado, da qual participaram apenas pessoas da sua estrita confiança, como os ministros que o acompanhavam, o presidente do Senado e o primeiro vice-presidente da Câmara dos Deputados.

Sem disfarçar a indignação, lembrou que se algum ministro se sentiu desconfortável, era só ter falado com ele e pedido para sair do jantar. Coisa que não aconteceu.

Se o objetivo da Globo News era apenas registrar uma fofoca ou um bastidor, o assunto deveria ter acabado aí.

Mas não.

O assunto se transformou em verdadeiro tribunal contra Janja, que voltou a ser criticada pelas comentaristas da Globo News por interferir em temas que, segundo elas, não seriam de sua alçada.

Enquanto parte da audiência se dividia entre crítica e defesa de Janja, as redes sociais ganhavam nova munição para intensificar ataques ao governo em meio a um verdadeiro festival de machismo e misoginia contra a primeira-dama.

Longe de constituir-se em mais uma fake news de que Janja ou o próprio governo Lula são vítimas, esse episódio precisa ser entendido como parte de uma ampla dinâmica que atende pelo nome de guerra híbrida.

Sim, como veremos, trata-se de uma guerra nada convencional, na qual os artefatos bélicos são substituídos por informações distorcidas ou mentirosas com o objetivo de alterar determinada realidade e influir na visão das pessoas de uma região, coletividade ou país.

Entender esse processo passa, antes de qualquer coisa, pela radiografia do que é e como surge uma fake news.

É o que faremos a seguir.

Como qualquer mentira, uma fake news para ser eficaz em seus objetivos precisa contar com algum grau de veracidade. Não teria qualquer eficácia, por exemplo, dizer que Lula não foi bem recebido pelo colega chinês, porque são fartas as imagens demonstrando o contrário. Da mesma forma que não há como dizer que a viagem não foi um sucesso diante dos investimentos e acordos firmados.

Daí o único campo de ação que sobrou para a criação de fake news ter sido o espaço privado durante o jantar na residência de Jinping. Um espaço que ele abriu pela primeira vez para um convidado estrangeiro, deixando claro o apreço que tem por Lula e pelo Brasil.

Só num espaço privado, distante dos olhos do público, que uma fake news como essa poderia ter sido ambientada. Daí questões fundamentais precisarem ser colocadas:

— Baseado em quais evidências a fonte em off da Globo News pode afirmar que a fala de Janja causou constrangimentos?

— Essa fonte brasileira domina o mandarim?

— É familiarizada com os hábitos e reações dos chineses?

— Mais ainda: quem pode assegurar que o tal constrangimento não foi um acréscimo da própria Globo News ao relato que obteve?

O off é um recurso jornalístico válido. Mas transforma-se em atentado à ética jornalística, quando publicado sem a devida apuração. E foi exatamente o que a Globo News fez. A impressão ou opinião de alguém não pode valer mais do que os fatos, especialmente quando colocados em seu devido lugar como fez Lula e sem que houvesse qualquer contestação.

Além do relato do presidente sobre o que aconteceu, a rede social Tik Tok, depois do episódio, enviou carta ao governo brasileiro declarando estar disponível para discutir sua atuação no país e avaliar possíveis regulamentações. Já o governo chinês anunciou que vai isentar brasileiros de vistos para viagens de até 30 dias.

Se o objetivo da Globo News era simplesmente divulgar um off, como quis fazer crer, o assunto, a partir de então, não teria mais razão de ser.

Quando, no entanto, o Grupo Globo insiste em manter o tema na ordem do dia e é acompanhado pelos demais veículos da mídia corporativa brasileira fica patente que a questão saiu do campo jornalístico e entrou no da guerra híbrida.

Esta viagem de Lula à China pode ser considerada o ato mais importante da diplomacia brasileira neste terceiro mandato. Ela ocorreu num contexto em que a nossa diplomacia busca manter-se equilibrada no relacionamento com seus parceiros tradicionais, Estados Unidos e China.

O entendimento da diplomacia brasileira é de que o mundo passa por rápida transformação e não cabem alinhamentos automáticos com o país devendo buscar vantagens e oportunidades para o seu desenvolvimento onde elas estiverem.

Prova disso é que o Brasil integra tanto o G-20 quanto o BRICS.

Não é esse o entendimento de Donald Trump, que tem deixado claro que o seu interesse é recolocar a América Latina na condição de quintal para seu país.

O vice-presidente dos Estados Unidos, J.D. Vence, e o secretário de Estado, Marco Rubio, já repetiram tal fala com todas as letras e curiosamente não se viu nenhuma crítica na mídia corporativa brasileira a este tipo de postura neocolonialista em pleno século XXI.

Aliás, a mídia corporativa brasileira, em uma atitude profundamente vira-lata, tomou as dores do bilionário estadunidense Elon Musk, dono da rede social X, quando, há poucos meses, ele tentou desafiar o ministro do STF, Alexandre de Moraes e a legislação brasileira, e extinguiu a representação de sua empresa aqui, a fim de não se submeter à nossa legislação.

Para surpresa de Musk e da própria mídia vira-lata, Moraes suspendeu o funcionamento do X até que a plataforma se adequasse às leis brasileiras. Ao invés de destacar a posição correta do ministro do STF, a entreguista mídia brasileira preferiu tachar o ministro como “autoritário”, fazendo coro com os golpistas do 8 de janeiro de 2023 que, na tentativa de se livrarem das condenações pelos atos que praticaram, voltam suas baterias contra ele e o STF.

Outra evidência de que o episódio atribuído à Janja trata-se de uma fake news é o fato do assunto ter sido reciclado pela mídia corporativa neste domingo (18), por intermédio de editoriais publicados pelos jornais O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, todos criticando duramente o governo Lula não mais por “constrangimentos criados ao governo chinês”, mas por solicitar a colaboração de um “governo ditatorial” para combater fake news em uma big tech chinesa, como é o Tik Tok.

Os três editoriais, cujo objetivo é o de funcionarem como “apito de cachorro” contra o governo Lula, deixam patente que a mídia corporativa brasileira decidiu abrir guerra em diversas frentes contra o governo Lula.

Agindo assim, ela retoma uma velha ladainha que tenta atribuir ao governo Lula traços autoritários ou de interesse em censurar a mídia.

Num momento em que o governo Lula, com o apoio do governo chinês e da própria empresa Tik Tok tem tudo para avançar na regulação das redes sociais, fica óbvio que o interesse verdadeiro desta mídia é que tal não aconteça.

Não passa de mera peça publicitária que a mídia corporativa tem compromisso com o fato e combate as fake news. A mídia corporativa brasileira é tão ou mais geradora de fake news que as redes sociais.

Aliás, uma das lições que este episódio que tentou atingir a primeira dama nos ensina é que aqui mídia corporativa e redes sociais atuam em conjunto e uma acaba potencializando a outra.

Aqui uma fake news pode ter origem tanto em uma rede social quanto em um noticiário ou comentário da mídia corporativa, como foi o caso. Uma vez repetida à exaustão não necessariamente convence todas as pessoas, mas cria problemas e desgastes para o governo, num ano chave, véspera das eleições presidenciais como o atual.

À exceção da revista Carta Capital, todos os veículos da mídia corporativa brasileira deram destaque, neste final de semana, não para o balanço extremamente positivo da viagem de Lula à China.

O que se viu foram notícias e mais notícias apenas sobre problemas, como se vitórias e avanços não existissem e a semana não tivesse sido de enorme sucesso para Lula.

É por isso que fake news, que os mais ingênuos podem considerar até sem maiores consequências como essa que a Globo News tentou atribuir à primeira dama, precisam ser observadas com muito cuidado.

Elas são parte da guerra híbrida, cujo objetivo último é desgastar lideranças progressistas e abrir espaço para o crescimento de candidatos sem qualquer compromisso com a soberania nacional e os interesses da maioria.

O que toda essa torpe atuação da mídia acaba deixando visível é que a campanha a favor do extremista de direita, Tarcísio de Freitas (Republicanos) para a presidência da República, já começou.

Tarcísio, por sua explícita postura entreguista em relação ao patrimônio nacional, conta com o apoio da mídia corporativa, das big techs e do Tio Sam. Ele é aquela figura que não tem qualquer compromisso com o desenvolvimento do país e se corremos o risco de voltar a ser quintal dos Estados Unidos, não lhe interessa em absoluto.

Quanto à mídia corporativa, a fake news sobre Janja igualmente contribuiu para desmascarar que não há diferença entre ela e as redes sociais no quesito mentiras e desinformação.

Não passa de balela que a mídia corporativa checa as informações. O episódio pôs a nu como essa mídia é mestre em criar fake news, sustentá-las apesar de todas as evidências em contrário e, pior ainda, ir modificando-as ao sabor dos seus interesses.

Se não houve constrangimento para as autoridades chinesas, pouco importa. A notícia/fake agora é que o governo Lula, com auxílio da China, quer censurar as redes sociais.

Só haverá paz para este ou qualquer outro governo progressista no Brasil trabalhar, quando as redes sociais e também a mídia corporativa forem alvo de legislação específica, que as impeça de mentir e continuarem impunes.

Até lá, continuaremos sendo praça de guerra híbrida para os interesses do Tio Sam e de seus lacaios locais.

Ângela Carrato, jornalista, professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. É membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa — ABI.

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Last Update: 18/05/2025