O artigo da jornalista Sylvia Colombo, publicado na Folha de S.Paulo sob o título Mujica abriu porta para sucessores, ao contrário de outros líderes da região, procura transformar o ex-presidente uruguaio José Mujica em uma espécie de modelo de estadista para a América Latina. No entanto, a tentativa falha por dois motivos principais: primeiro, os tais “sucessores” de Mujica nada têm de liderança popular; segundo, sua Frente Ampla nunca foi uma ameaça real ao imperialismo, o que explica o motivo de Mujica ter conseguido manter uma relativa estabilidade política.

A autora afirma: “Mujica trilhou esse caminho. (…) criou um sucessor, o atual presidente Yamandú Orsi”. Mas é necessário perguntar: quem é Yamandú Orsi? Um político da burocracia política uruguaia, eleito como qualquer outro parlamentar ou prefeito por dentro das instituições do Estado burguês. Diferente de Evo Morales, que representa o movimento popular boliviano, ou de Rafael Correa, que chegou ao poder impulsionado por uma rebelião popular contra o neoliberalismo no Equador, Orsi é produto de uma esquerda domesticada, inteiramente integrada ao regime.

A comparação entre Mujica e os “líderes personalistas” como Evo, Lula e Correa — feita por Colombo com ar de desprezo — revela uma total incompreensão do que está em jogo. Esses líderes, com todos os seus limites, foram expressão de mobilizações populares reais e enfrentaram ofensivas diretas do imperialismo. Evo Morales, por exemplo, sofreu um golpe militar em 2019, articulado pelos Estados Unidos. Rafael Correa foi perseguido judicialmente e impedido de disputar eleições. Lula foi preso por uma operação montada a mando do Departamento de Justiça norte-americano. Mujica, ao contrário, passou incólume por todo esse período, mesmo em meio a uma série de golpes e desestabilizações em toda a região.

E por quê? Porque, ao contrário do que insinua o texto da Folha, a Frente Ampla nunca representou uma ameaça real ao status quo latino-americano. A jornalista diz que Mujica “não está metido numa novela sucessória intrincada como a Bolívia de Evo Morales nem deixou o país sem opções de continuidade, como faz o próprio Lula no Brasil”. Mas omite que essa suposta “tranquilidade institucional” do Uruguai se deve exatamente ao fato de que Mujica e seus “sucessores” jamais enfrentaram os interesses do imperialismo.

Não por acaso, a Frente Ampla sempre manteve relações amistosas com o imperialismo europeu e norte-americano, foi crítica da Venezuela e de Cuba, e defendeu as “democracias liberais” em plena época de repressão aberta contra os movimentos populares na América Latina. Sua “estabilidade” é a estabilidade da subserviência.

Sylvia Colombo exalta que Mujica “legalizou o aborto” e o “casamento igualitário”, como se esses direitos civis, importantes mas secundários diante da opressão econômica, fossem marcas de um governo transformador. Mais do que isso, tenta vender a sobriedade pessoal de Mujica como virtude política: “Vivo como vive a maioria do povo uruguaio”, ela o cita. Ora, a história já demonstrou que líderes podem ser modestos na vida privada e totalmente inócuos na vida pública. A questão não é o estilo de vida de Mujica, mas sua política.

Por fim, a jornalista conclui que “o poder só vale se for usado para abrir caminhos, não para ocupá-los indefinidamente”. Mas que caminhos Mujica abriu? Para onde esses “sucessores” estão levando o Uruguai? Certamente não para uma ruptura com o imperialismo, nem para uma transformação social profunda. Apenas para a continuidade de uma esquerda dócil, funcional ao sistema e absolutamente inofensiva. Uma espécie de preparação para o fenômeno Gabriel Boric.

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Last Update: 18/05/2025