A prisão de um cidadão que se autointitula “rei da Alemanha” poderia ser tratada como mera curiosidade sensacionalista, um delírio isolado digno de um título satírico. No entanto, a decisão do governo alemão de prender Peter Fitzek — que, além de declarar-se monarca, criou um “Estado paralelo” com passaporte próprio e “moeda alternativa” — revela muito mais sobre a fragilidade do regime político alemão do que sobre a sanidade do indivíduo. Em um contexto de crescente desmoralização das instituições, até os devaneios mais absurdos são vistos como ameaças à “ordem democrática”.
A ditadura do “estado democrático”
Peter Fitzek, de 49 anos, não é um revolucionário. Suas ações incluem ocupar propriedades abandonadas, emitir documentos falsos e proclamar-se líder de uma “Nova Alemanha”. Seu projeto, uma colcha de retalhos esotérica que mistura negação do Estado moderno e nostalgia monárquica, dificilmente conquistaria adeptos além de círculos marginais. Ainda assim, em abril de 2024, o Tribunal Regional de Dessau-Roßlau condenou-o a quatro anos e três meses de prisão por “formação de organização criminosa” e “usurpação de funções públicas”.
A pergunta que se impõe é: por que um Estado que se orgulha de sua solidez democrática dedicaria tanto esforço para neutralizar um homem que distribui coroas de papel? A resposta está no medo. Medo de que, em um ambiente de desconfiança generalizada, até as fantasias mais desconexas mobilizem as pessoas contra a frágil “democracia” alemã. Fitzek, afinal, não está só: seu “reino” atraiu cerca de 1.000 cidadãos, muitos deles desiludidos com o sistema político. Seu caso expõe o desespero de um regime que é tão impotente, a ponto de tornar verdadeiros delírios coletivos em crises reais.
Quando o Estado Tem Medo de Sua Sombra
A Alemanha não é exceção no cenário de desgaste das “democracias”. Desde a gestão desastrosa da pandemia até a submissão aos interesses da OTAN na guerra da Ucrânia, passando pela crise energética que elevou inflação, o regime político alemão apodrece a cada dia. Pesquisas de abril de 2024 mostram que 72% dos alemães consideram o país “no caminho errado”, enquanto partidos tradicionais, como o SPD e a CDU, perdem espaço para partidos de extrema direita (AfD) e grupos da extrema esquerda.
Nesse cenário, qualquer discurso antissistema — mesmo o mais delirante — ganha potencial subversivo. Fitzek não seria perigoso por suas ideias, mas sim pelo vácuo que elas preenchem: a desconfiança nas instituições. Quando partidos de oposição legítima são criminalizados (como o Die Linke, alvo de perseguição por críticas à OTAN) e protestos contra sanções à Rússia são tratados como “antipatrióticos”, qualquer oposição ao regime pode parecer legítima.
Regimes Frágeis e a Caça às Bruxas
A história mostra que governos em crise tendem a aumentar a perseguição a grupos tidos como subversivos. Na Alemanha Oriental, o Stasi monitorava até piadas contra o regime, sinal claro de paranoia e fraqueza do regime. A ironia é que a Alemanha atual, que se vê como herdeira moral da resistência ao nazismo, repete a lógica autoritária ao tratar a dissidência como crime. Fitzek foi condenado com base em leis antiterrorismo criadas após ataques de 2015 — as mesmas usadas para vigiar ativistas políticos e grevistas. O recado é claro: questionar o Estado, mesmo que da forma mais absurda, é “terrorismo”.
O Capitalismo Não Tolera nada
O caso do “rei” alemão revela uma verdade inconveniente: sob o capitalismo em declínio, a democracia torna-se um ritual vazio. As instituições, embora mantendo a fachada do pluralismo, não toleram desafios — por menos convincentes que eles pareçam num primeiro momento. A obsessão em controlar a opinião pública (seja através de censura digital, leis contra “fake news” ou criminalização de protestos) prova que o sistema democrático só se sustenta mediante a supressão dos direitos democráticos.
Não por acaso, a mídia corporativa trata Fitzek como “ameaça à segurança”, ignorando que seu “reino” é, acima de tudo, um sintoma. Sintoma de que milhões já não veem o Estado como representante legítimo, mas como um mecanismo de esmagamento do povo. Enquanto o governo se mobiliza para prender um homem que imita monarcas, falha em conter a crise econômica, com 14% da população em subempregos.
Um regime a cair de podre
Ao transformar Peter Fitzek em inimigo público, o regime alemão não demonstra força — expõe insegurança. Se um monarca de circo é perigoso o suficiente para ser posto na cadeia, o problema não com ele, mas sim com o regime que visivelmente apodrece. Ao prender o “Rei”, a Alemanha atesta que cegou ao patamar de que, para sobreviver, precisa prender até as caricaturas de oposição.
Enquanto isso, a crise de legitimidade aprofunda-se. Movimentos sociais, sindicatos e até soldados das Forças Armadas alemãs (como revelaram vazamentos em 2024) expressam descontentamento aberto. Nesse contexto, o espetáculo em torno do “rei” expõe a pergunta que o regime teme: quando não há mais fé na democracia capitalista, o que resta além do colapso?