Antes, era uma inocente ferramenta para jovens apaixonados por videogames se reunirem. De repente, transformou-se numa máquina de moer infâncias: crianças morrendo por causa de desafios realizados na plataforma, células neonazistas se organizando em suas salas virtuais e até ataques terroristas — algo impensável para qualquer brasileiro — estavam sendo planejados.

Se você não esteve 100% desconectado nas últimas semanas, sabe que estamos falando do Discord. A plataforma, que começou como uma rede de comunicação para os jogadores de um Multiplayer Online Battle Arena (MOBA) chamado Fates Forever, foi lançada no final de 2015 e, nesses dez anos de atividade, transformou-se numa verdadeira febre entre a juventude. Nela, encontraram uma ferramenta de rede e comunicação que vai além de fotos e vídeos: é baseada na troca de informações e experiências ao vivo.

Como ela se organiza em servidores — algo como “clubes” baseados em determinados tipos de conteúdo —, acaba reunindo pessoas com interesses em comum e gerando o sentimento de pertencimento e comunidade. Isso é essencial para a vida em sociedade e para a espécie humana, especialmente nas idades mais tenras.

Este ambiente, no entanto, tem sido palco de episódios absolutamente preocupantes envolvendo a juventude. Eles se acumulam em ritmo assustador: a menina Sarah Raissa, de apenas 8 anos, morreu após inalar desodorante em um desafio; adolescentes tentaram atacar, com material inflamável, uma pessoa em situação de rua enquanto transmitiam o “desafio” ao vivo; mais de 50 jovens morreram nos últimos dois anos por causa de “jogos” na plataforma, segundo a Polícia Civil do Rio de Janeiro.

Vamos assistir calados? O que estamos fazendo, enquanto sociedade e enquanto família, para não perder essa juventude?

Devemos entender alguns pressupostos imperativos para a vida em sociedade. Um dos primeiros é que crianças e adolescentes são, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sujeitos de direito integral (art. 3º da Lei federal 8.069/1990). A garantia desses direitos é “dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.

É fundamental pensar em como cada um dos agentes mencionados está cumprindo seu dever.

Do ponto de vista do poder público, o pedido de suspensão da plataforma no Brasil, feito pelos deputados Guilherme Boulos (PSOL-SP) e Reimont Otoni (PT-RJ) — este último presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados — encontra respaldo no próprio ECA e no Marco Civil da Internet.

Você pode se questionar se, por essa lógica, não deveríamos também cassar as licenças de operadoras telefônicas, já que crimes são cometidos por telefone. No entanto, comunicações privadas estão protegidas pelo sigilo (art. 5º, XII da Constituição Federal), enquanto o que ocorre em espaços públicos da internet não está. Além disso, tecnologias já permitem que plataformas como o Discord mapeiem palavras e comportamentos e atuem na eliminação, contenção e denúncia desses conteúdos às autoridades.

Como há condições técnicas para moderação e acompanhamento, e as empresas ainda agem de forma morosa, torna-se evidente a urgência do debate sobre regulamentação. Não se trata de censura — ou seja, proibição prévia —, mas do uso do aparato tecnológico para conter esse movimento que vem ceifando a nossa juventude.

Mas não dá para esperar apenas o Estado. Quando os pais e mães vão, de fato, cuidar da presença digital dos filhos? Se não os deixam ir à rua sozinhos, por que permitem que interajam com estranhos online sem nenhuma supervisão?

A família é a primeira citada no ECA. Isso não é aleatório. Há uma ordem de prioridade e de responsabilidade sobre quem deve agir para proteger nossas crianças. Depois que algo acontece, podemos processar, fechar a plataforma, aplicar indenizações milionárias — nada disso trará de volta as vidas perdidas.

Precisamos estar atentos à presença digital dos jovens. Ignorar suas contas, deixar de conversar sobre riscos e práticas de segurança (digitais e analógicas) é deixá-los à mercê da própria sorte. É necessário educar, vigiar e denunciar os casos identificados.

A comunidade e a sociedade em geral também têm responsabilidade. Passamos dos limites ao fechar os olhos em nome da “liberdade” ou do “avanço tecnológico”, como se essas coisas fossem incompatíveis com a saúde e a preservação da infância. Não são. Só haverá uma sociedade livre e evoluída se houver infância e adolescência saudáveis.

As escolas precisam levar isso a sério, com programas educativos sobre presença digital. As famílias precisam ocupar os espaços digitais com conteúdo de qualidade. Precisam preencher o tempo das crianças fora das telas. O problema não está nas crianças com telas, mas nos adultos com telas, que as abandonam diante de outras telas, sem supervisão.

Está na hora de invertermos o jogo: agora é a nossa vez de lançar os desafios.

Primeiro, os setores organizados da sociedade civil precisam assumir responsabilidades. Enquanto as big techs fogem da responsabilidade pelo conteúdo, o setor de jogos eletrônicos brasileiro mostrou como fazer: o Marco Legal dos Games (Lei federal 14.852/2024) dedicou um capítulo inteiro à defesa de crianças e adolescentes. Ele responsabiliza qualquer fornecedor de jogos eletrônicos que atue no Brasil e não atue para impedir a propagação de violência em seus jogos e comunidades.

Depois, é preciso entender que esses “desafios” nada têm de jogo. Jogos eletrônicos visam à diversão, ao aprendizado e ao convívio saudável, como prevê o marco regulatório do setor. Eles empregam milhões de pessoas, movimentam bilhões de dólares no mundo todo e geram oportunidades reais aos países que tratam isso com estratégia.

Por fim, o desafio principal é direcionado aos adultos: quantos de nós consegue propor uma noite de jogos em família? Quem está disposto a largar o celular e a TV para desfrutar de um livro, uma comida gostosa, um filme juntos — mas sem mexer no celular?

Quanto você está disposto a dedicar ao futuro da sociedade e, principalmente, à certeza de que seu jovem — esse que está aí do seu lado agora, provavelmente navegando na internet — chegará à vida adulta saudável, feliz e com a capacidade de construir um mundo melhor?

O desafio está lançado. Bora?

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Last Update: 16/05/2025