Na última quinta-feira (8), Nicola Packer, uma britânica de 45 anos, foi absolvida por unanimidade em julgamento no tribunal de Isleworth, em Londres, após ser acusada de realizar um aborto ilegal durante o lockdown da Covid-19, em novembro de 2020. A mulher, que enfrentou quatro anos e meio de processo judicial, relatou ter sofrido humilhações e traumas, incluindo prisão em um hospital horas após uma cesariana e exposição de detalhes íntimos de sua vida em tribunal. A acusação alegava que Packer tomou pílulas abortivas sabendo estar além do limite legal de 10 semanas de gestação, o que ela sempre negou.

Packer foi detida por policiais enquanto ainda se recuperava de uma cirurgia, após um natimorto de um feto estimado em 26 semanas. A promotoria a acusou de “administrar a si mesma uma substância nociva” com intenção de provocar um aborto, com base na legislação britânica que regula o uso de medicamentos abortivos.

Durante a pandemia, uma lei emergencial permitiu o envio de pílulas abortivas pelo correio para gestações de até 10 semanas, medida que se tornou permanente. A britânica negou ter conhecimento de que sua gravidez ultrapassava esse limite, e o júri, após seis horas de deliberação, considerou-a não culpada.

A experiência deixou marcas profundas em Packer, que relatou ter perdido a confiança na polícia e no sistema de saúde. “Eu odeio ficar em silêncio agora”, disse ela, explicando que a quietude a lembra da cela policial onde foi colocada após a cirurgia. “Fui levada diretamente do hospital para a delegacia de Charing Cross. Foi horrível. Tive que sentar em um banco de madeira, sem cinto de segurança, em uma van policial, andando por Londres assim”, relatou.

Ela também afirmou que, na delegacia, seus medicamentos anticoagulantes foram negligenciados, sendo informada que “não era prioridade”. “Eu ainda estava com dor, extremamente cansada, me sentindo muito fraca e mentalmente sem entender o que estava acontecendo”, acrescentou. Durante o julgamento, a promotoria expôs detalhes de sua vida sexual, incluindo relacionamentos alternativos, e exibiu fotos íntimas, como imagens de seu corpo, discutindo até o tamanho de seus mamilos.

“Foi completamente desnecessário, feito só para me fazer parecer mal”, declarou Packer. “Foi bastante humilhante. Eu não queria que ninguém visse essas fotos, mas sabia que era para o meu próprio bem. Não é legal saber que pessoas viram imagens tão íntimas de você”. Ela também descreveu o sofrimento de prestar depoimento: “foi horrível dar meu testemunho, absolutamente terrível. Passei a maior parte do tempo chorando, mas consegui porque sabia que estava certa”.

Packer gastou dezenas de milhares de libras em sua defesa, parcialmente cobertas por uma vaquinha online. “Li todos os comentários várias vezes. Durante o julgamento, também. Há tantas pessoas que não acham que isso deveria estar acontecendo, há muito apoio”, afirmou.

Sobre o veredicto, ela disse: “foi maravilhoso receber esse veredicto. Embora os últimos quatro anos e meio tenham sido horríveis, ter a validação de ser considerada unanimemente não culpada por um júri de meus pares é algo incrível”.

A britânica também mencionou o caso de Carla Foster, outra mulher condenada por aborto ilegal e que passou 35 dias na prisão antes de ter a sentença suspensa. “Fiquei muito brava por ela ter passado por isso. Por quê? Quem isso ajudou? Qual foi o objetivo? Não havia sentido em mandá-la para a prisão, e você tem que pensar no impacto no resto da vida dela”, disse Packer.

Ela teme que outros casos semelhantes estejam em andamento no sistema judiciário britânico e agora defende a descriminalização do aborto. “Espero que a lei mude, ela deveria mudar. Aborto é cuidado de saúde. Não deveria ser tratado como qualquer outra coisa”, afirmou.

Um porta-voz do Crown Prosecution Service (CPS) explicou que o papel da promotoria foi avaliar se Packer sabia que estava além do limite legal ao realizar o aborto, considerando que havia evidências suficientes para levar o caso a tribunal. Sobre as imagens e detalhes íntimos, o CPS afirmou que “nunca é nossa intenção envergonhar ou humilhar publicamente alguém com as evidências apresentadas”, mas que isso foi necessário para determinar o estágio da gravidez.

Packer busca respostas do CPS e da polícia metropolitana de Londres sobre como seu caso foi conduzido, afirmando que “havia outras maneiras de lidar com isso depois que estive no hospital. Eu poderia ter ido para casa me recuperar. Não havia necessidade legal de me levar direto para uma delegacia”. Ela também expressou medo de buscar ajuda médica: “eu estava certa em estar assustada”, disse, referindo-se à sua hesitação em informar a equipe médica sobre as pílulas abortivas, temendo um atendimento pior. “Mas eles não me ajudaram mesmo, ajudaram?”, questionou.

A britânica quer ser a última mulher processada por aborto na Inglaterra. “Esses processos podem acontecer com qualquer um, isso é o que assusta. Com a lei como está, um acidente trágico e você está em julgamento, e é por isso que a lei precisa mudar”, declarou. Enquanto aguardava o julgamento, Packer enfrentou o medo de uma possível sentença de prisão perpétua, questionando: “Como me preparo para o pior resultado? Alugo meu apartamento e cancelo a Netflix? O que faço? Nunca estive nessa situação antes”.

O caso de Packer reacende o debate sobre a legislação britânica de aborto, que data de 1861 e ainda criminaliza mulheres em certas circunstâncias. Segundo a organização British Pregnancy Advisory Service (BPAS), pelo menos seis mulheres enfrentaram investigações policiais por aborto entre 2020 e 2023.

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Last Update: 16/05/2025