Marianna Brennand estava em São Paulo para o lançamento do documentário Francisco Brennand, sobre seu tio-avô, quando, em um almoço com a cantora Fafá de Belém, ouviu uma história da qual não conseguiria mais se afastar: a da exploração sexual de crianças nas balsas do Rio Tajapuru, na Ilha de Marajó (PA), norte do Brasil.

“Fiquei muito tocada, muito mexida”, diz a diretora, às vésperas de lançar seu novo longa-metragem, Manas, cuja semente foi plantada naquele encontro. “Sou do Nordeste, que é do lado do Norte, e não tinha ideia daquilo. Saí daquele almoço decidida a fazer um documentário de denúncia.”

O ano era o de 2013. Em 2014, o projeto ganhou um edital do Fundo Setorial do Audiovisual voltado ao desenvolvimento de ideias. Não demorou, porém, para que Marianna e a produtora Carolina ­Benevides entendessem que o sonhado documentário de denúncia não existia.

Após as primeiras viagens para Marajó, Marianna teve clareza de que a complexidade daquele tema e a dor que dele advém não eram compatíveis com a rea­lização de entrevistas ou com a exposição de personagens reais. “Com o tempo, também fui entendendo que, sendo uma ficção, o filme poderia ter um impacto maior”, diz a diretora.

Manas tem como protagonista Marcielle, chamada de Tielle pela família, que está deixando a infância e entrando na adolescência. Quem faz o papel da menina é a paraense Jamille Correa, descoberta pela equipe durante as centenas de testes de elenco feitos no Estado.

Desde a condecoração em Veneza, o filme recebeu mais de 20 prêmios e foi vendido para países como França e Portugal

A trama começa com o retrato delicado da rotina de Tielle. Ela vive numa palafita com a mãe, Danielle (Fátima Macedo), o pai, Marcílio (Rômulo Braga) e três irmãos, cercada pela natureza exuberante, pela escassez de bens de consumo e pela igreja, com seus cantos e pregações.

Conforme a narrativa avança, à aparente serenidade daquele ambiente vão sendo adicionados pequenos focos de estranhezas e incômodos. O roteiro, escrito ao longo de oito anos, parece uma partitura musical em que, dos movimentos mais suaves, em adagio ou alegro, saem os motivos que, mais adiante, explodirão num gran finale.

A escrita contou, em sua fase inicial, com Antonia Pellegrino e Camila ­Agustini. Numa segunda fase, entraram no projeto Felipe Sholl e Marcelo ­Grabowsky. Tanto a diretora quanto a produtora do filme também trabalharam como roteiristas.

E, não bastassem todas essas mãos, o roteiro recebeu ainda comentários dos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, duas vezes ganhadores da Palma de ­Ouro em ­Cannes, com Rosetta (1999) e A Criança (2005). A entrada dos irmãos Dardenne no projeto deu-se de forma improvável.

Marianna inscreveu Manas em um encontro com produtores promovido pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2018, e foi selecionada. Uma das convidadas era a produtora ­Delphine Tomson, que trabalha com os Dardenne. Ao ler o roteiro, ela imediatamente se encantou e pediu a Marianna que o vertesse para o francês para que os cineastas pudessem lê-lo.

Mergulho. Marianna Brennand passou oito anos trabalhando no roteiro de Manas, que nasceu como documentário de denúncia e depois tornou-se ficção – Imagem: Diogo Formiga

A partir daí eles não apenas passaram a dar sugestões relativas ao roteiro – e, mais adiante, ao corte final – como se tornaram produtores associados do filme. Outros produtores associados são o diretor Walter Salles e a produtora Maria Carlota Bruno, ambos de Ainda Estou Aqui (2024).

A essa rede de nomes fortes do circuito internacional do cinema de arte se somaram, nesta fase de lançamento, a Paris Filmes, distribuidora de alguns dos maiores sucessos do cinema brasileiro, como as franquias De Pernas Pro Ar, DPA – O Filme e Turma da Mônica.

Todo esse caminho e todas essas parcerias espelham uma característica marcante de Manas: o fato de as opções artísticas do filme, mesmo sendo densas, contemplarem a busca pelo diálogo com diferentes públicos.

O filme, não por acaso, foi lançado em quase cem salas do País, na quinta-feira 15 – o que pode ser considerado uma boa aposta para um longa-metragem com esse perfil. Desde a sua primeira exibição pública, no Festival de Veneza de 2024, de onde saiu com o prêmio de direção da mostra paralela Giornate Degli Autori, Manas recebeu mais de 20 prêmios. Além disso, foi vendido para França, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Portugal.

Na França, inclusive, o filme estreou antes do Brasil. E, de lá, Marianna trouxe uma certeza: a exploração sexual e o abuso intrafamiliar existem não apenas em todas as cidades brasileiras, mas no mundo. “Você não imagina quantas mulheres, ao fim da sessão, vêm me abraçar e agradecer por eu ter feito o filme”, diz Marianna, tentando dar forma às reações causadas por sua primeira ficção.

Embora tenha ido estudar cinema sonhando em trabalhar com ficção, ­Marianna, desde que se formara, em 2002, na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, só havia dirigido documentários.

Ao voltar do exterior, ela foi bater à porta da casa de seu tio-avô, o artista plástico Francisco Brennand ­(1927–2019), no Recife, com a proposta de fazer um filme sobre ele. “Ele era aquele parente que, pela fama artística e pelo jeito de ser, sempre me deixou muito curiosa. Lembro de, quando criança, ir à oficina dele e ficar fascinada”, conta.

Brennand topou fazer o filme, mas disse que seu projeto de vida era, na verdade, publicar seus diários. Marianna tinha então 22 anos e a entrada naquele universo criativo foi, um pouco, como atravessar um portal. No fim, ela acabou por coordenar o projeto de catalogação da obra da Brennand, lançou um livro sobre ele e ainda publicou os quatro volumes de seus diários. Só depois disso tudo lançou o filme – premiado em festivais em 2012 e lançado em 2013.

Nesse meio-tempo, fez outro documentário: O Coco, A Roda, O Pneu e O Farol (2007), sobre a tradição musical do coco de roda no bairro de Amaro Branco, em Olinda (PE).

“No Marajó, a natureza é determinante. Ela é deslumbrante, mas é também avassaladora, e te oprime”, diz a diretora

É com uma pontinha de orgulho que a diretora conta que, graças a esse filme, algumas artistas populares puderam voltar a viver de sua arte. É de forma parecida que ela relata o projeto da Oficina Francisco Brennand – da qual foi presidente de 2019 a 2023 –, que envolve a produção de peças de cerâmica na região da Mata da Várzea, no Recife, e impacta a comunidade local.

Agora é a vez de a cineasta jogar luz sobre outra comunidade, a das populações ribeirinhas da Ilha de Marajó, retratadas nessa ficção que, ao mesmo tempo que é muito colada à realidade, é banhada pela fantasia e pelas águas abundantes de um rio que influi no curso daquelas vidas.

“No Marajó, a natureza é totalmente determinante. Ela é deslumbrante, mas é também avassaladora, e te oprime”, diz Marianna. “A Tielle não tem para onde ir. Ela vive naquela palafita projetada sobre o rio e, para sair dali depende do barco a remo ou, para ir mais longe, de combustível ou óleo diesel.”

É esse mundo que Manas, de modo impactante, desvenda e recria. •

Publicado na edição n° 1362 de CartaCapital, em 21 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Infâncias roubadas’

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Last Update: 15/05/2025