O confronto entre o novo papa e o presidente dos EUA, Donald Trump, não é apenas provável, como iminente. Com a imigração no centro de seu pontificado, Leão XIV já deixou claro que acolher o estrangeiro não é uma questão meramente política, mas um imperativo evangélico. Desde que foi eleito, em 8 de maio, o líder religioso não apenas ergueu a voz em defesa dos migrantes, como denunciou o racismo e a xenofobia, condenou o negacionismo climático e acenou para reformas internas na Igreja Católica.
Ao condenar a proliferação de notícias falsas e a manipulação da fé em plataformas digitais, Leão XIV chamou os “influenciadores do medo” de “mercadores do caos moral”, e acrescentou que “a verdade não se negocia com algoritmos”. Trump, que transformou o medo em estratégia eleitoral e a hostilidade contra migrantes em política de Estado, fez-se de rogado, e comemorou a eleição do primeiro papa nascido nos EUA, na cidade de Chicago e naturalizado cidadão peruano. “Parabéns ao cardeal Robert Francis Prevost, que acaba de ser nomeado papa”, escreveu o presidente, em sua própria rede social. “É uma grande honra saber que ele é o primeiro papa norte-americano. Que emoção e que grande honra para o nosso país. Estou ansioso para conhecer o papa Leão XIV. Será um momento muito significativo!”
O vice-presidente JD Vance, que é católico, também celebrou a notícia: “Tenho certeza de que milhões de católicos norte-americanos e outros cristãos rezarão por seu trabalho bem-sucedido à frente da Igreja. Que Deus o abençoe”. No entanto, a ala mais conservadora e intransigente do país viu seu entusiasmo ruir no instante em que Leão XIV apareceu na sacada da Basílica de São Pedro para sua primeira bênção pública. O papa proferiu a saudação Urbi et Orbi em latim, italiano, espanhol e árabe – mas, notavelmente, não em inglês. A decisão provocou uma tempestade de indignação nos círculos da direita norte-americana. Imediatamente, apoiadores do movimento MAGA (“Make America Great Again”) reagiram nas redes sociais, acusando o pontífice de “esnobar” os EUA e “desrespeitar a civilização cristã”. Em aparições seguintes, como em sua primeira missa, Leão XIV chegou a se expressar brevemente em inglês, mas o rebanho de Trump permaneceu implacável.
Laura Loomer, ativista de extrema-direita que tem influência significativa sobre o presidente, revoltou-se na rede social X: “ESTE É O NOVO PAPA! Seu nome é Robert Prevost. Ele é o primeiro papa norte-americano. Ele é anti-Trump, anti-MAGA, pró-fronteiras abertas e um marxista completo, como o papa Francisco. Os católicos não têm nada de bom para esperar. Apenas mais um fantoche marxista no Vaticano”. Já o ex-senador republicano Rick Santorum afirmou ao Newsmax que não gostava do fato de o novo pontífice não falar em sua língua nativa. “Ele está falando espanhol. Ele é norte-americano e nem sequer falou em inglês. Quer dizer, não sei como vocês podem afirmar que este é um papa norte-americano se ele nem sequer fala em sua língua nativa. Isso me perturba muito.”
À rede BBC, Steve Bannon, o ex-estrategista-chefe de Trump, disse estar chocado com a escolha do cardeal Robert Francis Prevost para o cargo, porque ele não parecia ser adepto do conceito “América em primeiro lugar”. “Quer dizer, é de cair o queixo. É chocante para mim que um sujeito que teve o feed do Twitter e as declarações que fez contra políticos norte-americanos de alto escalão possa ser escolhido para ser o papa”. O “feed do Twitter” ao qual Bannon se refere é o extenso e incisivo conteúdo publicado pelo então cardeal Prevost na rede social. Nas postagens, ele se posicionava claramente contra as políticas adotadas pela administração Trump.
Em abril, ele retuitou uma publicação sobre a deportação de um residente dos EUA, na qual o bispo auxiliar Evelio Menjívar questiona: “Você não vê o sofrimento? Sua consciência não está perturbada? Como pode ficar quieto?” Em fevereiro, compartilhou um artigo que criticava o apoio de JD Vance às deportações e ao tratamento dado pelos EUA aos migrantes. Em outro momento, publicou o texto intitulado “JD Vance está errado: Jesus não nos pede para classificar nosso amor pelos outros”.
Crítico da política anti-imigração dos EUA, o novo papa tem um perfil bem mais discreto que seu antecessor
O diretor do Centro de Religião e Cultura da Universidade Fordham, David Gibson, diz estar confiante de que Leão XIV continuará a enfatizar os “ensinamentos da Igreja quando o governo Trump agir contra os inocentes e vulneráveis”. Ainda assim, ele afirmou a CartaCapital que o novo papa adotará uma postura mais discreta, na comparação com seu carismático antecessor. “Suspeito que ele fará tudo de forma muito mais silenciosa do que Francisco. Leão XIV não enfrentará nenhum líder. Mas, em sua determinação silenciosa, deve ser contundente e talvez até mais eficaz. Se os católicos norte-americanos conservadores apoiarem Leão XIV, então o governo Trump terá de pensar duas vezes antes de se indispor com o papa.”
Dados do Pew Research Center estimam que apenas 20% da população norte-americana se identifica como católica. No Brasil, esse porcentual chega a 50% e na Itália supera os 80%. Ainda assim, segundo o último Relatório Anual do Óbolo de São Pedro, divulgado em junho do ano passado, a Igreja Católica nos EUA é, disparado, a maior doadora do Vaticano em todo o mundo. Segundo o levantamento, em 2023, as dioceses que mais enviaram dinheiro a Roma foram as norte-americanas, com mais de 15 milhões de dólares, superando em muito as doações feitas por outros países, como a Itália (3,5 milhões de dólares) e o Brasil (2 milhões de dólares).
Gibson não arrisca um palpite sobre a capacidade de o papa Leão XIV atrair mais fiéis nos EUA. “A dinâmica da frequência à igreja é muito conectada à cultura local. De toda forma, acredito que ele continuará a ser, como Francisco foi, um líder moral e espiritual para uma época em que os EUA e tantos outros países seguem um caminho de nacionalismo autoritário.” Para o diretor, também estudioso do catolicismo e a modernidade, Leão XIV pode reposicionar o Vaticano como um polo de resistência ética em tempos de regressão civilizatória. “Ser um farol de esperança pode servir como um testemunho poderoso para a Igreja e atrair a atenção de um mundo que busca algo além de um salvador político.” •
Publicado na edição n° 1362 de CartaCapital, em 21 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘À sombra de Francisco’