Duas mortes, duas reflexões: Mujica e Divaldo
por Dora Incontri
Já estava preparando minha homenagem a Pepe Mujica, para o texto de hoje, quando chegou a notícia da morte do conhecido médium baiano Divaldo Pereira Franco, aos 98 anos de idade. Como espírita, assinante de uma coluna que fala sobre espiritualidades e espiritismo, de forma crítica e progressista, não posso deixar de me manifestar sobre esta desencarnação – para usar um termo que nos é caro.
Mujica, era um ateu (que dizia graciosamente que não acreditava em Deus, mas esperava estar errado) e Divaldo, um espírita, portanto da comunidade em que me enraízo existencialmente. Entretanto, eu me identifico muito mais com o líder político uruguaio do que com o líder espírita baiano.
Divaldo teve longa e ampla atuação no movimento espírita hegemônico – leia-se conservador, inclinado à direita, institucional, que, para nós progressistas, representa um afastamento da visão mais aberta e progressista do próprio Kardec. O que foi sempre objeto de reflexão crítica de minha parte e de outros pensadores de um espiritismo mais de vanguarda, é o fato de o movimento ter se organizado aqui no Brasil com foco em lideranças mediúnicas, acima de qualquer possível diálogo crítico – o que se deu também com Chico Xavier. Kardec sequer mencionava o nome dos médiuns, que seriam para ele apenas intermediários. A liderança no espiritismo estaria muito mais diluída e recairia sobre pessoas com conhecimento, pesquisadores, pensadores – como ele próprio, Kardec – do que sobre detentores de dons mediúnicos, sempre sujeitos a um crivo de racionalidade crítica. A análise das obras de Divaldo (e de Chico Xavier) nunca foi feita publicamente. Mas há leitores mais aguçados que apontam problemas graves do ponto de vista da própria filosofia espírita e mesmo do conhecimento científico – como é o caso da famosa série psicológica espírita de sua mentora espiritual, Joanna de Ângelis.
Mais recentemente, desde o golpe contra Dilma e a história triste da Lava-Jato e depois do avanço da extrema direita e a ascensão do bolsonarismo, Divaldo infelizmente ficou do lado errado da história. Falta de letramento político? Ingenuidade? Tudo isso, entende-se. O que não se pode aceitar é fazer de uma adesão pessoal uma representação do pensamento espírita. E então, houve de fato uma rachadura, e mesmo muitos, que admiravam Divaldo, se afastaram.
De qualquer modo, é um ser humano, digno de nosso respeito, que teve uma obra social grandiosa na Bahia, cuidando dos mais vulneráveis por muitas décadas. Assim, como boa espírita, já fiz minha prece por ele, com os votos de que vá em paz e seja bem recebido do lado de lá.
Agora, Mujica. Por esse tenho enorme admiração. Camponês, revolucionário, guerrilheiro, prisioneiro da ditadura militar uruguaia durante quase 15 anos, no total. Por anos em solitária, por anos torturado física e psicologicamente, até sem poder ter acesso a livros – entendo como isso pode ser uma tortura. E depois de tudo, não se deixou capturar pelo ódio, não deixou de acreditar na possibilidade de mudar o mundo através da ação política – e então não mais através da revolução armada, mas pelas vias democráticas, pelas vias possíveis.
E foi eleito deputado, senador e depois presidente do Uruguai, pelo Movimento de Participação Popular – que integrou a Frente Ampla, uma coalisão de esquerda no país. Fez o que pôde, o que devia e o que alcançou. O que me encanta, porém, em Mujica é sua simplicidade, sua coerência de vida, jamais cedendo ao luxo, aos encantos do poder, ao consumismo. Um ateu à moda franciscana, um socialista real. Suas falas de convocação ao despojamento, ao usufruto da vida e do amor, em detrimento da busca desenfreada de posição e dinheiro são exemplares e inspiradoras. Muito próximas do outro grande, que se foi recentemente, o Papa Francisco.
A visão crítica e transformadora da sociedade, embora haja sempre as nuanças de cada corrente e de cada pessoa, é um caminho determinante para minha admiração. Penso que tais vidas contribuem mais para o mundo do que as conservadoras e reacionárias. Embora nenhuma vida seja sem significado, nenhuma vida seja isenta de contribuições, dentro da boa fé e do engajamento sincero.
E aqui deixo meu voto para Mujica: vá em paz e se descobrir que estava errado sobre Deus, volte para contar!
Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.
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