Um dos retratos da pós-modernidade é o pastiche, possivelmente junto à paródia – muitas vezes malfeita, o que define a arte neste momento histórico. O cinema norte-americano abraçou fortemente esse desejo do mercado consumidor pela imitação e, de dez anos para cá, alguns estúdios descambaram a relançar obras clássicas, pastichando-as o máximo que pôde para que coubessem na moral contemporânea.

Isso, não sejamos inocentes, estava alicerçado em pesquisas internas, ninguém queima dinheiro. Entretanto, nalgum momento parece ter saído do rumo e insistido no erro, motivado por valores ideológicos de grandes financiadores do capital internacional, inclusive as próprias empresas de produção audiovisual. Isso potencializado pela bolha de artistas e equipes de produção mais mergulhadas no pensamento pós-moderno, em que se desvaloriza toda forma de tradição e busca-se, por meio da arte, mudar as ideias das pessoas ao sabor da sua própria.

Com isso, eu poderia falar de, talvez, dezenas de filmes, os quais um leitor pode lembrar especificamente de alguns, e outro poderia acrescentar outros totalmente diferentes. Contudo, para cumprir com a agenda das terças-feiras, a bola da vez é “Branca de Neve” (2025), dirigido por Mark Webb, mesmo diretor da série “O espetacular homem-aranha”, entre 2012 e 2014, com terceiro filme marcado para os próximos anos.

O reino, a princesa, a feiticeira

Não há elemento que mais incomode os produtores de audiovisual norte-americanos, especialmente a Disney, que a ideia da princesa. Isso vem em várias camadas:

Primeiro, isso remete à monarquia, tradição, a ideia de uma família nobre que quer o bem ao seu povo por sua filiação às raízes dele, e não porque prometeu ações e deve cumpri-las, como numa democracia. Portanto, quando se fala em reino, não se fala em democracia.

Segundo, a garota princesa remete à mulher do cuidado, da desejada por outro príncipe, com o qual vai se casar e ter filhos para dar futuro ao reino. O cerne da princesa é sua futura maternidade, que deve ser protegida e é predada pelos vilões.

Terceiro, ainda que não se fale em cristianismo, remete-se a ele por razões óbvias: a cristandade era a matriz da Idade Média retratada nos contos de fadas. E, obviamente, as figuras da bruxa má, da feiticeira, da rainha má, sempre remetem à magia negra, pagã, para constituir o inimigo do reino e da princesa presumivelmente cristãos.

Se todas as formulações tradicionais do cinema foram quebradas pela pós-modernidade, desde a companheira do Indiana Jones batendo em dez homens sem magia nenhuma, enquanto ele apanha; ou Luke Skywalker que se torna um idiota, enquanto a Rey nada precisa aprender e já luta com sabre de luz melhor que ele e pilota a Millenium Falcon melhor que o Han Solo; os contos de fadas foram partidos ao meio.

Mas por que eles?

A tradição centenária, milenar se pensarmos em suas origens de arquétipo, cenário e moral, é forte demais para passar ao largo, com um ou outro ajuste. Em 2008, a British Broadcasting Corporation (BBC) fez Merlin, uma série à Harry Potter em que Merlin aprende magia enquanto Artur é um príncipe mimado e Uther Pendragon é um rei cruel. Morgana é uma garota impedida de viver pelos padrões patriarcais de Camelot e Guinevere é sua serva, negra. Lancelot é um guerreiro latino e por aí vai.

O poder da ancestralidade, guardado por Merlin, não existe, já que ele tem a mesma idade do Rei Artur e aparece quase como um colega zuado na escola. A nobreza de Guinevere é transferida para o seu caráter, não para sua ascendência nobre. A vilania de Morgana não se devia à inveja contra Artur, mas à revolta contra o patriarcado. Artur não era um estadista ético e equilibrado, mas um jovem que só não destruiu o reino porque contou com pessoas do povo, como Merlin e Guinevere, para demovê-lo de delírios tirânicos.

Ainda assim, a série era muito mais tradicionalista que as atuais. Artisticamente falando. O compromisso da série tinha um mínimo da história real de Artur, pelo simples fato de ele estar ao centro e, ao fim, tornar-se um rei bom. Em “Branca de Neve”, a garota não é branca (e, como um mesmo latino como é a garota escolhida, eu tenho o famigerado “lugar de fala”), não é invejada por sua beleza, mas pelo seu coração (afinal, nem bela a atriz é, ela se notabiliza no meio cinematográfico por ser boa cantora), não possui um reino digno de nota, a não ser um castelo cercado de natureza, não é recebida pelos anões (são seres mágicos na história, para não ofender pessoas com nanismo), não possui no príncipe um redentor e, de forma alguma, é acordada com um beijo. Luta ela própria uma revolução contra a rainha má, que é má porque é uma tirana, não porque tem inveja da beleza da Branca de Neve.

Desse espremedor de suco, o tradicional ficou no bagaço, o suco recebeu aditivos pós-modernos de qualquer ordem, do anticapacitismo ao feminismo e à revolta socialista. O resultado foi um desempenho tenebroso nos cinemas, de um filme que já vinha sendo atrasado há alguns anos, sob o argumento da pandemia, primeiro, mas depois sob críticas pesadas de que o público não seria capaz de aceitar uma concepção inclusiva da Branca de Neve.

Declarações desastrosas das atrizes Rachel Zegler (Branca de Neve) e Gal Gadot (Rainha Má) rodaram a internet, chamando o público de preconceituoso. Este, afinal, deu o troco. Fica a questão sobre onde está o poder e o preconceito, se nas pessoas, com suas contradições, ou em produtores e atrizes ricos que não sabem enxergá-los. Ou, se o problema fosse o patriarcalismo, teria o filme obtido sucesso com salas lotadas de mulheres, o que não ocorreu.

Que saída para contemplar as minorias?

O grande mistério dessa postura destrutiva dos estúdios norte-americanos é que, no fim das contas, eles fazem esse trabalho sem a necessidade dela. Diversas produções que contemplam magnificamente as minorias já foram testadas. “Viva: a vida é uma festa” (2017), dos quase estreantes Lee Unkrich e Adrian Molina, contou uma história tocante sobre o Dia dos Mortos mexicano, sendo os latinos minoria racial no contexto norte-americano (aqui, óbvio, somos todos latinos). Pantera Negra (2008), de Ryan Coogler, fez imenso sucesso e tirou dos fundos do baú da Marvel um novo herói da primeira prateleira, cujas aventuras ocorrem no coração da África. No mundo dos games, Tomb Raider segue aí, desde 1996, com as peripécias de Lara Croft saltando, atirando e batendo num misto de Duro de Matar com Indiana Jones.

Histórias boas, quando assim criadas, chegam ao coração das pessoas e podem, sim, transformar ideias. É lógico que uma mulher como Lara Croft morreria diante da primeira emboscada de homens que encontrasse. Evidente que o reino do Pantera Negra não existe. Contudo, suspende-se a descrença porque é uma nova história, dos nossos tempos, sem destruir as nossas raízes e acrescentando novos valores.

Só que a pós-modernidade é, em essência, primeiro preguiçosa, aflita por fazer o capital girar mais com menos. Segundo, quer ampliar o mercado ao máximo para a orientação ideológica mais propícia para seus negócios, e a tradição dos contos de fadas passa longe de um mundo em que espera-se o novo Iphone ou uma boa carta de investimentos na XP. Hoje, o que temos é uma queda de braço entre o tradicional e o pós-moderno, tidos por velho e novo, com vitória parcial para aquele primeiro.

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Last Update: 14/05/2025