Familiares das vítimas dos Crimes de Maio de 2006, em conjunto com organizações populares, juristas e pesquisadores, lançaram na quarta-feira (7), em São Paulo, um Tribunal Popular para denunciar o Estado brasileiro pelas centenas de assassinatos cometidos por policiais naquele mês. A iniciativa marca os 19 anos do massacre e terá atividades até maio de 2026, quando se completam duas décadas da maior chacina urbana da história recente do País.

Entre os dias 12 e 21 de maio de 2006, a Polícia Militar e grupos de extermínio executaram 564 pessoas em diversas cidades paulistas, sob o pretexto de combater ataques realizados por membros do Primeiro Comando da Capital (PCC). As mortes ocorreram como represália à série de rebeliões iniciadas nos presídios e aos ataques contra policias. A grande maioria dos assassinados eram civis pobres, alvejados sumariamente pelas forças de repressão.

De acordo com levantamento do Laboratório de Análises da Violência da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apenas 59 dos mortos eram policiais. Os demais 505 eram civis, assassinados por retaliação da polícia. A cada agente morto, 8,6 civis foram executados. Em pelo menos 122 casos, há provas e testemunhos que indicam claramente a autoria direta da Polícia Militar nas execuções.

“Precisamos, como população organizada, colocar o Estado brasileiro no banco dos réus”, declarou Débora Maria da Silva, mãe de Edson Rogério Silva dos Santos, morto pela PM em maio de 2006, à Agência Brasil. “O Estado brasileiro precisa ser julgado pela população que paga seus impostos e não tem uma devolutiva em cima de toda essa barbárie que o Estado propõe na favela e na periferia, principalmente com meninos pretos”. Débora é fundadora do movimento Mães de Maio e pesquisadora do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp.

O Tribunal Popular foi lançado durante o seminário internacional Violência de Estado nos Crimes de Maio – Direito à memória, justiça, reparação e não repetição, organizado por entidades como a Conectas, a Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas e a Anistia Internacional. As atividades incluem audiências, denúncias públicas e divulgação do que familiares das vítimas têm a dizer.

Juliana Borges, escritora e coordenadora de projetos da Iniciativa Negra, afirmou que o objetivo do tribunal é denunciar a impunidade e a cumplicidade do sistema de Justiça brasileiro. “A ausência de responsabilização pelos Crimes de Maio expõe a lógica seletiva e racista do sistema de Justiça criminal brasileiro, que trata vidas negras e periféricas como descartáveis”, afirmou. “A falta de resposta institucional efetiva a essas chacinas aprofunda o trauma das famílias, nega o direito à memória e reforça um ciclo de violência estatal contínua”.

O Tribunal Popular não tem caráter jurídico formal, mas, segundo seus organizadores, cumpre papel político. “Não é uma tentativa de substituir o Judiciário, mas de tensioná-lo”, explicou Borges. O julgamento será conduzido por representantes dos movimentos sociais, mães de vítimas e especialistas em direitos humanos, e o veredito será definido por manifestação popular.

Entre as ações associadas à iniciativa está o projeto EnfrentAção – Pesquisa e Intervenção Multiprofissional, fruto de uma parceria entre a Unifesp, o movimento Mães de Maio e o Ministério da Justiça. O projeto prevê atendimento a até 150 mulheres atingidas diretamente pela violência do Estado, em cinco estados: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Ceará.

No domingo (11), também foi realizado ato público em memória das vítimas na cidade de Santos, onde diversas execuções ocorreram.

O massacre teve início com a transferência de 765 presos, incluindo o líder do PCC, Marcola, para presídios de segurança máxima. Em resposta, o PCC articulou rebeliões em 74 unidades prisionais e ordenou ataques contra alvos policiais. A reação do Estado foi uma operação de matança indiscriminada: viaturas policiais, delegacias, prédios públicos e favelas foram alvos de incursões que resultaram em centenas de mortes. A repressão deixou ainda 110 pessoas feridas e instaurou um clima de terror. Escolas, comércios, serviços e transportes públicos foram paralisados.

Após quase duas décadas, nenhum policial foi responsabilizado pelas centenas de mortes.

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Last Update: 13/05/2025