História do Capitalismo sem Capital
por Fernando Nogueira da Costa
Não é incomum historiadores do capitalismo narrar a história de sua emergência sem apontar de onde vem a acumulação de capital-dinheiro prévia ao capitalismo. É equivocado falar a respeito do sistema capitalista sem falar de dinheiro e/ou da monetização dos negócios burgueses.
Talvez essa investigação parcial tenha dado margem ao anacronismo da literatura crítica à “financeirização”. Vou contrapor aqui a crítica à narrativa linear do surgimento do capitalismo: a acumulação primitiva de capital-dinheiro (antes da consolidação do modo de produção capitalista) é negligenciada ou tratada como mera precondição, gerada pelo comércio monetizado, quando, na verdade, ela é parte constitutiva do processo histórico.
O capital-dinheiro antecede o capitalismo como modo de produção, em vários séculos antes da revolução industrial do XVIII para o XIX, e emerge em formações sociais onde a produção não é ainda capitalista, mas onde já operam formas mercantis com moedas pré-capitalistas. A acumulação de capital-dinheiro tem origens múltiplas.
Uma foi através do comércio de longa distância. Desde a Antiguidade e, mais intensamente, na Baixa Idade Média, comerciantes italianos, muçulmanos e bizantinos acumulavam grandes somas em dinheiro a partir da mediação entre zonas econômicas desconectadas. Gênova, Veneza, Florença, Bruges e outras cidades eram centros de acumulação mercantil e financeira desvinculada da produção direta.
Outra foi a exploração colonial e pilhagem. A conquista das Américas inaugurou uma forma não-produtiva de acumulação, centrada na violência sistêmica. Houve a expropriação de terras dos nativos, com os indígenas colocados em trabalho forçado, a escravização de africanos e o saque de metais preciosos.
Essa acumulação violenta se deu por meio de Estados fiscal-militares. Também fortaleceu o aparecimento de mercados financeiros na Europa.
Quanto ao sistema bancário e à dívida pública, os Estados europeus recorreram a mecanismos de crédito e emissão de títulos, para financiar guerras, navegações e administrações. A consolidação de centros bancários (como Gênova e Antuérpia) permitiu a transformação de riqueza mercantil em capital-dinheiro a ser investido.
Os arrendamentos tinham obrigações de pagar impostos e a usura acabou por ser institucionalizada. A prática de arrendamento tributado e a cobrança de juros sobre empréstimos aos reis e à nobreza criaram fluxos contínuos de dinheiro dissociados da produção material.
Falar em capitalismo sem falar em dinheiro (e sua forma capital) é um equívoco, derivado de leituras de autores sem destacar essa relação estrutural. Abstraem o capital como “produção” isolada, sem sua mediação monetária ou adotam uma perspectiva smithiana, na qual a moeda surge apenas como facilitadora do “troca-troca” mercantil como unidade de conta e meio de pagamento.
Na verdade, o dinheiro como capital-dinheiro, isto é, reserva de valor da riqueza financeira, é central no capitalismo. Atua não apenas como meio de circulação, mas como valor a ser valorizado em mercados (D–M–D’ em Marx).
O capitalismo só se torna dominante quando o dinheiro assume a forma de capital sistematicamente investido para obter mais dinheiro. Deixa de ser apenas como meio de troca e unidade-de-conta e atua como reserva de valor, ou seja, riqueza.
Marx, em O Capital (Livro I, capítulo sobre a Acumulação Primitiva, 1867), rejeita a ideia de o capitalismo emergir da frugalidade dos empreendedores, tal como veio a ser defendido por Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1905). Em vez disso, identifica processos violentos e expropriadores como fundadores.
Destaca os cercamentos de terras (enclosures) na Inglaterra, a expropriação camponesa e proletarização forçada, a escravidão transatlântica e a exploração colonial, o endividamento dos Estados e a “financeirização” embrionária. Esses processos constituem a base histórica da acumulação inicial de capital-dinheiro, sem a qual o modo capitalista de produção não poderia se generalizar.
Portanto, é sim um erro teórico e histórico falar de capitalismo sem considerar a centralidade do dinheiro como forma social, especialmente, do capital-dinheiro como peça fundamental. A monetização das relações, o crédito, a dívida pública, os bancos e a pilhagem colonial não são antecedentes exógenos, mas condições constitutivas da gênese e reprodução do capitalismo.
As monarquias absolutistas dos séculos XVI a XVIII se financiavam por meio de uma combinação complexa de receitas fiscais, monopólios reais, dívidas públicas e arranjos com grupos privados. Era um contexto no qual o Estado moderno ainda estava em formação e a separação entre finanças públicas e privadas era ambígua.
Entre as fontes de financiamento das Monarquias Absolutistas já eram estabelecidas as receitas fiscais por meio de tributos diretos: incidiam, em teoria, sobre toda a população, mas na prática eram fortemente regressivos. Os camponeses e a plebe urbana pagavam o grosso da carga tributária. A nobreza e o clero costumavam ser isentos ou negociavam o pagamento de quantias fixas.
Os tributos indiretos, como impostos sobre o sal, vinho, pão, ou pedágios, eram amplamente utilizados. Desde então, incidiam sobre o consumo popular.
Apenas impostos extraordinários sobre os nobres ricos, como a taille na França ou a alcabala na Espanha, podiam ser aumentados em tempos de guerra.
As coroas detinham monopólios sobre atividades como sal, tabaco, metais preciosos, mineração, alfândegas etc. Como concessões, esses monopólios eram arrendados a particulares. Pagavam adiantado ao rei em troca do direito de explorar a atividade em princípio pública. O arrendamento fiscal não vem de hoje…
A dívida pública primitiva, conhecida como “empréstimos obrigatórios” ou dívida perpétua (juros vitalícios), acontecia por meio da emissão de títulos como os juros compostos espanhóis (juros sobre juros) ou os rentes franceses (rendas vitalícias pagas pelo Estado). Tais títulos eram vendidos a nobres endinheirados, banqueiros e burgueses mercantis, que assim financiavam a Coroa em troca de uma renda estável e prestígio.
As monarquias frequentemente se financiavam por meio de empréstimos de grandes casas bancárias europeias, sobretudo italianas e alemãs. Ficaram famosos os banqueiros genoveses na Espanha (século XVI) como também os Fugger e Welser do Império Alemão ao financiarem Carlos V. Esses bancos antecipavam recursos com garantia em impostos futuros, minas de prata ou direitos de exploração colonial.
A monarquia absolutista recorria à venda de cargos públicos (e seus e privilégios) como forma de levantar fundos sem recorrer ao Parlamento. Na França, isso foi institucionalizado sob Richelieu e depois Colbert). Criava uma nobreza de toga (noblesse de robe), composta por burgueses enriquecidos.
Quem pagava os tributos eram principalmente os camponeses, especialmente, na França e na Europa Central, porque arcavam com o maior peso fiscal, tanto em trabalho compulsório quanto em dinheiro. A burguesia urbana pagava impostos comerciais, taxas sobre atividades produtivas e consumo. A nobreza e o clero costumavam ser isentos, mas podiam fazer “contribuições voluntárias” ou empréstimos ao rei, especialmente em tempos de crise bélica.
Nesses tempos, quem comprava os títulos de dívida pública era a nobreza rica, porque desejava manter rendimentos estáveis sem depender de terras. O burgueses mercantis viam nos títulos uma forma de segurança e status, além de reforçar sua proximidade com a corte.
As instituições religiosas e as fundações de caridade investiam suas rendas em títulos da dívida pública para garantir fluxos regulares.
Em síntese, as monarquias absolutistas operavam em um regime fiscal predatório e regressivo. Extraía recursos principalmente das camadas populares, enquanto se financiava por meio de alianças estratégicas com elites mercantis e nobres credoras. A dívida pública embrionária funcionava tanto como instrumento de financiamento do Estado quanto como mecanismo de integração das elites financeiras ao poder régio, antecipando a lógica capitalista de “Estado fiscal-militar”. Aqui, até hoje, militares querem intervir no poder civil e ditar regras…
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected].
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