do Substack: Amanhã não existe ainda
Da resistência à “resiliência”
por Luis Felipe Miguel
Ulrike Meinhof não costuma ser uma referência muito prestigiada. Afinal, ela foi uma das líderes do agrupamento terrorista alemão que leva seu nome – a Fração do Exército Vermelho, que ficou conhecida como “bando Baader-Meinhof”.
Mas, enquanto Andreas Baader era um sujeito de ação, ela era uma intelectual com certa sofisticação. É autora de um punhado de ensaios que ainda são lidos com interesse. Uma coletânea foi publicada em inglês com o título Everybody talks about the weather… we don’t (Seven Stories Press, 2008).
O terrorismo de esquerda dos anos 1970, nos países capitalistas desenvolvidos, nasceu de diversos fatores. Um dos principais foi o sentimento de que o sistema político era impermeável às reivindicações das pessoas comuns, que se alastrava entre jovens e trabalhadores.
Muitas vezes, esse sentimento se traduz em apatia e desinteresse. É o “modo normal” de funcionamento das democracias limitadas. Em momentos de ativação política crescente, porém, ele pode levar a outros resultados. Aí, a desilusão com os canais estabelecidos de participação política pode se tornar um estímulo à opção pela violência política.
Segundo pesquisa feita em 1971, um em cada quatro alemães com menos de 30 anos de idade expressava solidariedade aos terroristas. Na atmosfera sufocante da Alemanha da Guerra Fria, a violência parecia, para muitos, a única forma de se fazer ouvir.
Não é muito diferente da onda de simpatia, hoje, por Luigi Mangione, o suspeito pelo assassinato do presidente da empresa de seguros de saúde nos Estados Unidos.
Meinhof morreu em 1976, aos 41 anos, num suicídio mais do que duvidoso numa prisão alemã. No ano seguinte, Andreas Baader e Gudrun Ensslin, outra fundadora do grupo, também apareceram mortos em suas celas. O único dirigente inicial da Fração do Exército Vermelho que sobreviveu à prisão, Horst Mahler, é hoje um ativo neonazista. Mas a organização operou até os anos 1990, sendo responsável, em seu período final, pelos assassinatos dos presidentes de grandes empresas, como a Siemens e o Deutsches Bank.
O escrito mais célebre de Ulrike Meinhof é aquele que estabelece a diferença entre protestar e resistir:
“Protesto é quando eu digo que eu não gosto disso. Resistência é quando eu coloco um fim naquilo de que eu não gosto. Protesto é quando eu digo que me recuso a continuar com isso. Resistência é quando eu garanto que todo mundo também pare com isso”.
O protesto é “verbal”, a resistência é “física”.
Quando Andreas Baader, seu futuro parceiro político, foi preso por ter incendiado uma loja, ela analisou o caso e concluiu: “Os aspectos progressistas de pôr fogo numa loja de departamentos não residem na destruição de produtos, mas no ato criminoso, em violar a lei”. De uma maneira que faz lembrar Frantz Fanon, ela julga que a violência dos oprimidos revela uma inconformidade que não tem como se expressar de outra forma, pois, quando se expressa de forma “aceitável”, está endossando exatamente as estruturas que precisaria combater.
Há muitas questões que esse apelo à violência suscita, éticas e políticas (e que eu discuto no meu livro Dominação e resistência, publicado pela Boitempo em 2018). Uma, pragmática, é qual o resultado da resistência violenta – assumindo que simplesmente simbolizar o inconformismo não basta para justificá-la, que elçeprecisa servir à luta.
Para Carlos Marighella, a guerrilha urbana devia “transformar a situação política em situação militar”. Já Ladislau Dowbor, então dirigente da Vanguarda Popular Revolucionária, via um aspecto propagandístico: “Nós não professamos teorias que as massas não entendem. Em vez disso, nossos ataques contra o inimigo visível são compreendidos imediatamente”.
Em suma, ao expor o caráter opressivo da dominação, ampliaria os custos de sua reprodução, uma estratégia que – é preciso reconhecer lhanamente – fracassou.
Mas a resistência não é necessariamente violenta. Pode tomar a forma da objeção de consciência, quando um de nós se recusa a fazer algo que lhe é demandado. Ou, então, da desobediência civil, quando esta recusa é um movimento coletivo. Pode ganhar as feições de um confronto com os poderes estabelecidos. Tem, em suma, muitos caminhos.
A palavra que mais se ouve hoje, porém, é outra: resiliência. Eu tenho a impressão de que até poucos anos atrás, só se usava resiliência ou resiliente no seu contexto original, falando de física dos materiais.
Agora, a “resiliência” é a virtude que se espera de tudo e de todos – ou melhor, que se espera dos explorados, dos oprimidos, dos dominados, dos ferrados em geral. A resiliência é a qualidade de aguentar qualquer coisa e de esperar passar.
Ou continuar aguentando, se não passar nunca.
“Resiliência” para o trabalhador submetido a condições de trabalho desumanas, para o precarizado que se vira como pode, para a mulher diante do machismo tóxico, para o doente desassistido. Em vez de mudar o mundo, provar que sobrevivemos nele, apesar de tudo.
Para não ser mal compreendido (e, no ambiente de debate dos dias atuais, as chances de ser mal compreendido é sempre enorme): é importante a capacidade suportar as intempéries, de não se quebrar diante da adversidade. Essa é uma qualidade de que todos nós precisamos.
Mas essa capacidade precisa de disposição de mudar a situação. Resiliência sem protesto e sem resistência é perpetuar a injustiça e a opressão.
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).
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