Relutei muito em escrever sobre esse tema. Quanto mais eu lia, mais camadas eu descobria. O que significa que vou, no máximo, arranhar a superfície de um assunto multifacetado e provavelmente desagradar muita gente. A começar pelos papeis de gênero que mereciam um texto só para eles, mas que deliberadamente não vou me aprofundar aqui. E é justamente pela complexidade que vale a pena escrever, sem pretensão de esgotar o assunto.
Nem o materialista mais vulgar acha que a vida se resume a concretude do aqui e agora. O ser humano, como um animal social, é capaz de sonhar, se apaixonar, ter empatia etc. ao mesmo tempo em que é capaz de inventar e criar. Nos identificamos com o personagem do livro e choramos quando o cachorro morre no filme, mesmo sendo de mentirinha. Gastamos horas customizando avatares nos videogames, construindo casas no The Sims e, se você foi criança nos anos 1990, tem uma chance aí de ter cuidado de um Tamagotchi (“bichinho virtual”).
Ir além do real nunca foi um problema. Ficcionar, inventar, fantasiar, fazer de conta… tudo isso faz parte da cultura. Mas pela repercussão que teve nas redes parece que os bebês reborn cruzaram alguma linha.
Para os marxistas, a relação do homem com a natureza não é direta, como no caso dos outros animais. É uma relação mediada pelo trabalho. E nessa mediação está implícita uma dimensão simbólica. A começar pelo fato de que o trabalho implica em alguma forma de linguagem. O que faz com que nossa relação com a realidade seja também mediada simbolicamente. Inventamos a Arte, a Cultura, as religiões, as ideologias e conhecemos a realidade por esses nossos sistemas de representação.
Nesse sentido, simular não é necessariamente fugir da realidade, mas elaborar sobre ela. Simbolizar e subjetivar, como dizem alguns psicanalistas. Quando estamos apaixonados e ouvimos uma música que parece dizer exatamente aquilo que queríamos dizer, mas não sabíamos como, conseguimos acessar esse sentimento porque a música funcionou como metáfora da realidade. Quando a situação é complexa, as metáforas nos ajudam a assimilar a realidade.
Em outras palavras, brincar é coisa séria e se engana quem pensa que é coisa de criança. O lúdico é essencial para lidarmos com essa mediação simbólica da realidade. A criança ao brincar de ser algo experimenta o mundo e assimila papéis sociais. O adulto, ao contrário, usa o lúdico para se refugiar e atenuar dureza da realidade experimentada. Nos bebês reborn, The Sims, cosplay, ou RPGs, há um desejo de experimentar o que não se pode ou não se quer viver integralmente na realidade.
O curioso sobre o fato dos bebês reborn é que esses são estranhos não porque são diferentes, pelo contrário: assustam por serem iguais. Bebês reborn tem partos, certidões de nascimento, rotinas de cuidado e tudo que uma criança normal tem direito. E aqui parece estar a linha cruzada. Enquanto na maior parte da ficção e do lúdico adulto as coisas têm hora para começar e acabar, os casos extremos envolvendo reborns parecem borrar essa fronteira ou mesmo inverter o polo: o objeto passa a dominar o sujeito. Nesse sentido causa tanto estranhamento quanto aquelas pessoas que decidem viver permanentemente seus personagens de cosplay.
Mas, como dito, se o lúdico tem esse lugar de experimentação daquilo que não pode ser vivido integralmente, quem garante que nesses casos extremos as mães de reborns não estejam sucumbindo aos papeis sociais impostos às mulheres pela ideologia machista? Um caso grave de alienação. Como deve ser crescer ouvindo que ser mulher é ser mãe e por algum motivo não conseguir atender essa expectativa? Seja por impossibilidade ou por não suportar a pressão e os desafios de uma maternagem real (sem romantismos).
Porque é impossível não notar que existam mães de reborn mas não pais.
Não dá para escapar dos papéis de gênero e de toda a ideologia que se abate sobre os corpos femininos. O que não significa que os homens não tenham suas bonecas. Mas elas são infláveis ou robôs sexuais.
Não se trata de ridicularizar quem cuida de um reborn. A maior parte das colecionadoras, inclusive, não chega nem perto desses níveis. A questão não é o objeto, mas a relação: vivemos uma era em que o sofrimento, a solidão e o desejo são resolvidos com objetos. Uma era que prefere o afeto domesticado ao amor incerto. Que estetiza a dor, encapsula o luto, terceiriza o vínculo. O bebê reborn não é um problema individual. É um sintoma coletivo de uma sociedade altamente alienante onde as relações se corroem para abertura de novos mercados.
Sempre fantasiamos e vamos continuar fazendo. Tampouco acredito num essencialismo biológico ou natural. Dede que existe cultura, sempre produzimos coisas sintéticas e hibridismos (o que é a Medicina se não isso?).
Em seu romance Androides sonham com ovelhas elétricas? Phillip Dick deixa no ar a pergunta: pode um simulacro desenvolver sentimentos humanos e, além disso, humanos ainda são humanos? Ao que parece, os episódios extremos com reborns são mais um caso de seres humanos sendo reificados e objetos sendo humanizados. Mas em invés de perguntar se existem algum sinal de humanidade em um bebê reborn, eu perguntaria: que mundo é esse que põe em dúvida a nossa própria humanidade?