Papa já compartilhou artigos com críticas a Trump. Foto: Alberto Pizzoli | AFP | Saul Loeb | AFP

Há mais de dois milênios, a Igreja Católica atravessa os séculos como uma embarcação teimosa em mar revolto, sobrevivendo a impérios, guerras, cismas e revoluções. É uma instituição que, por sua longevidade e capacidade de adaptação, merece ser ouvida — sobretudo quando se movimenta. E foi isso que aconteceu nos últimos dias: a escolha do novo pontífice, Leão XIV, um cardeal quase latino-americano nascido em solo estadunidense, foi, em essência, um gesto político global.

Num mundo em que as democracias vêm sendo solapadas desde dentro, via parlamentos, é obrigatório dizer que o colégio de eleitores que escolhe o papa num conclave representa, hoje, a forma mais abrangente de representação democrática em escala planetária. Reunindo vozes de todos os continentes, de múltiplas culturas e etnias, a assembleia cardinalícia funciona como um sismógrafo preciso da “alma do mundo”; e os sinais que emanaram do Vaticano, nesta semana, não deixaram dúvidas: há uma convergência, nem tão silenciosa, em torno de uma pauta progressista, ampla, ecumênica. Todas as listas de papabili publicadas nos jornais do mundo eram predominantemente progressistas, incluindo os cardeais europeus — as exceções localizadas estavam confinadas aos setores mais reacionários do clero africano e eurocaucasiano, mas em número claramente minoritário.

A escolha do cardeal Robert Prevost, o papa Leão XIV, traz inevitavelmente à memória a eleição de Karol Wojtyła, em 1978. Assim como João Paulo II foi um filho periférico do sistema soviético e tornou-se o catalisador — nem tão espiritual — do seu colapso, o novo papa latino-americano — um estadunidense vindo das franjas do império — pode ser o sinal do seu fim. Não mais como um militante contra o totalitarismo, mas como um parteiro atento da multipolaridade que se avizinha. A escolha de alguém “de dentro, mas à margem” é, como sempre, a fórmula que o Espírito Santo parece preferir quando deseja soprar sobre os impérios decadentes.

Há décadas, os Estados Unidos vêm distribuindo sinais de esgotamento, mas foi preciso que Donald Trump assumisse a presidência para que a implosão se tornasse visível a olho nu. Com sua retórica caótica, seu nacionalismo anacrônico e sua diplomacia de escavadeira, Trump talvez esteja destinado a ser o Gorbatchov do Ocidente: não o salvador, mas o coveiro de um sistema em colapso. Como Gorbatchov, herdou um Estado insolvente, hipertrofiado, federativamente fragmentado, politicamente cindido, incapaz de sustentar o próprio mito fundador. Sua tentativa de resgatar a grandeza americana parece, cada vez mais, um ato involuntário de autodestruição.

Enquanto isso, no outro lado do tabuleiro, Xi Jinping e Vladimir Putin — figuras que despertam sentimentos ambivalentes, mas que ninguém pode ignorar — ocupam os espaços deixados vagos pelos constantes tropeços trumpistas. Com o lastro dos BRICS e o avanço de uma arquitetura financeira e comercial alternativa, eles se erguem não como libertadores, mas como construtores de um novo arranjo de forças. Se Reagan e Thatcher ajudaram a sepultar o bloco soviético no século XX, talvez Xi e Putin estejam fazendo o mesmo com a hegemonia estadunidense no século XXI.

Os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da China, Xi Jinping. (Foto: Alexei Druzhinin)

Mas a morte de um império não significa o fim do capitalismo. Ao contrário: como todo parasita de longa vida, o capital aprendeu a trocar de hospedeiro com agilidade espantosa. Os movimentos recentes do agronegócio global são um exemplo eloquente disso. Quando a China descontratou mais de 1,5 bilhão de dólares em soja dos EUA e imediatamente redirecionou essa compra ao Brasil, os grandes conglomerados de commodities — onipresentes intermediários da riqueza mundial — não hesitaram. Trocaram bandeiras como se trocam rótulos, pouco se importando com o colapso iminente da lavoura estadunidense. Para eles, o dinheiro não tem pátria. Se o dólar cambaleia, há sempre o yuan, o rublo ou qualquer nova moeda criada pelos BRICS para manter a roda girando — enquanto eles acumulam a riqueza produzida por outrem.

Essa lógica apátrida do capital é o que torna possível o fim de uma hegemonia sem o fim do sistema. O capitalismo pode viver muito bem sem Washington no comando — provavelmente até deseje isso. Pode continuar a explorar, a concentrar renda, a fomentar desigualdades — apenas sob outras bandeiras, com outros sotaques. É por isso que o ocaso do império estadunidense não trará, por si só, um mundo mais justo. Mas pode, sim, abrir espaço para novas possibilidades — e nisso reside sua importância histórica.

No cenário que se desenha, o papa Leão XIV poderá ter um papel decisivo. Não como um líder político — pois seu poder é simbólico —, mas como uma âncora ética e cultural em tempos de vertigem. A Igreja, quando quer, sabe falar aos povos com uma linguagem que transcende o imediatismo das urnas e o ruído das redes sociais. E, se sua voz for usada para apoiar a autodeterminação dos povos, a preservação do meio ambiente e o reequilíbrio do poder global, poderá ser, mais uma vez, uma força transformadora.

Lula, com seu faro político aguçado, percebeu isso rapidamente. No dia seguinte à eleição de Leão XIV, em seu apoio, disse, em entrevista ao mundo, que o Brasil “não é e nem será quintal dos EUA”. Não apenas reiterou a soberania nacional — como qualquer estadista digno de respeito deveria fazer —, mas também sinalizou alinhamento com essa nova etapa da história. Uma etapa ainda incerta, sim, mas promissora. Lula repete, em Moscou, a coragem que sempre demonstrou ao tocar em assuntos dos quais outros líderes se esquivam — mas que, inevitavelmente, abrem as portas para que soluções se apresentem. Foi assim com Assange, e pode ser assim com o advento da multipolaridade. Nos próximos dias, veremos se outros líderes mundiais terão a coragem de embarcar nesse barco antes que os ventos mudem de novo.

Resta, por fim, a esperança de que essa transição não precise ser regada a sangue. Que o fim da hegemonia estadunidense, inevitável como a queda das folhas no outono que vivenciamos aqui no Sul, se dê sem guerras. Que a multipolaridade não seja apenas a troca de um império por vários, mas sim o início de um tempo em que o poder se distribua com mais sabedoria — e, quem sabe, com mais justiça.

O mundo muda. Que mude, desta vez, com lucidez, sem sangue derramado.

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Last Update: 10/05/2025