Em 8 de maio de 1945, a humanidade assistiu ao colapso do III Reich, selando o fim de um projeto político que transformou a morte em sistema, o ódio em regra e a mentira em método. Oitenta anos depois, contudo, não basta celebrar a vitória como um evento enclausurado no passado. É preciso olhar para ela com o horizonte crítico diante dos espectros que ressurgem, em novas roupagens, no cenário global. A ascensão da extrema-direita, o revisionismo histórico e a naturalização do autoritarismo exigem que reativemos a memória da resistência antifascista não como nostalgia, mas como potência de intervenção no presente.

Para isso, é preciso, primeiro, entender que o fascismo não é um acidente histórico, é uma resposta extremista das classes dominantes em momentos de crise estrutural do capital. Sua força reside não apenas na violência explícita, mas na capacidade de reconfigurar o senso comum, transformando o medo em arma, a insegurança em discurso e o ressentimento em projeto político. A derrota militar do nazifascismo em 1945, portanto, não extinguiu suas sementes ideológicas. Elas permaneceram latentes, adaptando-se às contradições do liberalismo e às fissuras da democracia contemporânea.

Ainda vivemos uma batalha permanente no campo simbólico, no qual se disputam os significados da liberdade, da justiça e da própria história. Quando setores da extrema-direita atual negam a ditadura, banalizam a violência política ou ressignificam os símbolos fascistas em nome da “liberdade de expressão”, estão corroendo a memória para conquistar o futuro.

No mundo de hoje, em que até mesmo alguns partidos de esquerda defendem programas de austeridade, cria-se um terreno fértil para demagogos que capitalizam o desespero social. Nos EUA, a crise de 2008, seguida por políticas de ajuste fiscal que privilegiaram bancos em detrimento de cidadãos, aprofundou desigualdades e alimentou uma “economia do ressentimento”, numa lógica em que a raiva das vítimas do sistema foi cuidadosamente desviada para bodes expiatórios como imigrantes, minorias e “inimigos internos”.

A União Europeia, ao transformar países periféricos em devedores eternos sob a lógica do capitalismo de vigilância financeira, normalizou a precariedade e a humilhação pública. Esse cenário, aliado às dificuldades da esquerda em propor alternativas radicais, permitiu que a extrema-direita europeia convertesse a indignação legítima em projetos de pureza nacional e autoritarismo. Assim, o fascismo moderno não é apenas herdeiro ideológico do século XX, mas fruto de um momento histórico em que o capitalismo monetiza a desesperança.

Esses fatores apontam para a fragilidade do imaginário democrático liberal que, nos últimos anos, se mostrou incapaz de responder às demandas daqueles insatisfeitos com a ordem das coisas por se sentirem excluídos do jogo político. A ascensão global da extrema-direita também é sintoma de um cenário em que o vazio deixado pelos liberais é ocupado por projetos que convertem a angústia social em “ódio identitário”. O fascismo do século XXI, assim, não repete mecanicamente os gestos do passado, mas se alimenta de novas tecnologias de manipulação afetiva e de uma economia política do medo.

Vivemos uma batalha permanente por justiça e pela história

Nesse contexto, celebrar os 80 anos da vitória sobre o nazifascismo é, antes de tudo, reconhecer que a democracia liberal não é antídoto suficiente contra o autoritarismo. Tudo indica que a democracia só se sustenta se for radicalizada, isto é, se enfrentar as estruturas de exclusão que permitem o florescimento do fascismo. A passividade diante da desigualdade, da precarização da vida e da segregação racial é, em última instância, um convite ao retorno desse horror que muitos julgavam superado.

No caso brasileiro, um país que se estruturou a partir de séculos de escravidão, fica fácil identificar como se comportam as elites locais diante do fortalecimento da extrema-direita, apoiando líderes autoritários que prometem “mudar tudo o que está aí” para, na verdade, manter privilégios históricos e impedir qualquer chance de ascensão social dos “de baixo”. O ódio à esquerda é a expressão pública dessa rejeição visceral a qualquer projeto que simbolize uma ruptura com a hierarquia racial e econômica que sempre definiu o Brasil. O fato é que o fascismo brasileiro adora apelar ao conservadorismo para manipular a consciência popular e naturalizar a desigualdade social.

O Brasil, que contribuiu com mais de 25 mil soldados da Força Expedicionária Brasileira na libertação da Itália, hoje vê seu próprio projeto democrático sob ameaça. A escalada do negacionismo, a glorificação da ditadura por parte de alguns setores e o avanço de grupos que defendem abertamente a violência política revelam uma ironia trágica: o país que um dia lutou contra o fascismo no exterior agora tem como desafio enfrentar problemas internos muito semelhantes.

A história é um campo de luta em que o passado é constantemente reescrito pelos vencedores. Por isso, cabe a nós, da esquerda, resgatarmos a memória do enfrentamento ao fascismo e fazer disso uma interpelação ética mais do que um monumento estático. Se soldados brasileiros foram capazes de derrotar o fascismo em solo estrangeiro, que nossa geração tenha a coragem de combatê-lo em seu próprio solo, nas ruas e no cotidiano das relações sociais.

A vitória que não terminou

Os 80 anos do 8 de maio nos servem de sinal de alerta. As tropas armadas do nazifascismo foram suplantadas em 1945, mas sua sombra ideológica ainda persiste nas crises da democracia burguesa. Precisamos ter a coragem de confrontar os novos fascismos, dando nome aos bois: aqueles que não trajam suásticas, mas usam algoritmos, que (ainda) não invadem países, mas sabotam instituições, que não queimam livros, mas fabricam ignorância.

Em 8 de maio, estamos apresentando no Congresso uma iniciativa que marca para sempre essa data como o dia nacional da luta contra o fascismo, mas a luta antifascista exige mais que discursos, exige a reconstrução de um projeto coletivo de emancipação que una justiça social, memória crítica e a ousadia de imaginar um mundo além da barbárie.

Que o 8 de maio nos lembre: os fantasmas do passado só ressuscitam quando o presente desiste de lutar.

Pela memória que incendeia, não pela que embalsama.

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Last Update: 10/05/2025