O Café, o Caos e o Capital
por André Araújo
Hoje o café amanheceu mais amargo. Talvez culpa da água que ferveu demais, talvez do noticiário. Sentei-me à janela, como quem espera algo — talvez uma brisa, talvez um milagre. Mas o que veio foi só o silêncio depois da notícia: mais uma guerra estourando no lado de lá do mundo, onde os mapas tremem, mas os donos dos tanques tremem menos.
O Brasil… ah, o Brasil acorda todo dia tropeçando em si mesmo. Há um tipo de caos que não faz barulho, mas grita em silêncio. Está nos ônibus lotados, nas crianças dormindo com fome e nos hospitais onde os corpos esperam mais que os vivos. É uma guerra sem bombas, mas com cortes: cortam-se verbas, esperanças, laços.
E em meio a tudo isso, surge ela: a “nova” razão econômica. Nova, dizem. Como se a fome tivesse ficado velha. Como se não fosse a mesma senhora de vestido roto pedindo um trocado no semáforo. A razão econômica agora fala inglês fluente, usa terno slim fit, e não olha nos olhos de quem pede pão. Ela não vê gente, vê mercado. Não escuta clamores, escuta gráficos.
Talvez tudo isso dê uma crônica boa. Mas eu só consigo ver a vizinha do lado correndo, atrasada para o trabalho que não paga o suficiente nem pra pensar em guerra — só para pagar o gás. Talvez, eu pudesse escrever um diálogo entre dois ministros discutindo como cortar ainda mais sem cortar a própria língua.
Ou ainda, talvez eu conseguisse escrever sobre um botão de camisa caído no chão da cozinha, e nesse botão explicasse o colapso do mundo. No entanto, continuo tentando entender como o real desvaloriza enquanto a vida também desvaloriza — e ninguém acena da bolsa de valores.
É difícil manter a fé num país onde os mendigos filosofam melhor que os economistas. Onde a guerra lá fora é manchete, e a guerra aqui dentro é rotina. Onde a razão é cada vez menos humana.
O café esfriou. O caos não.
E eu ainda não descobri se o que arde é o estômago vazio do povo ou o incêndio da alma brasileira. Talvez os dois. Talvez nenhum. Talvez seja só mais uma semana mesmo.
André Araújo é Assistente Social. Mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL. Doutorando pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Paulo (IAUUSP). Temas: Desigualdade Social; Política de Habitação de Interesse Social, Direito à Cidade; Estudos territoriais com práticas antirracistas. Integra o Núcleo Salvador da Rede BrCidades.
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “