No início do livro Política Externa Norte-Americana e Seus Teóricos, Perry Anderson escreve: “Desde a Segunda Guerra Mundial, o ordenamento externo do poder (dos EUA) tem sido, em grande medida, mantido à parte do sistema político interno”. Em outras palavras, os objetivos mais gerais do Estado apresentariam forte autonomia em relação às políticas de governo, passageiras. Se é certo que, ao longo da Guerra Fria, os democratas caracterizaram-se por uma brutalidade militar maior do que aquela dos republicanos, havia balizas permanentes nas ações internacionais dos Estados Unidos. Essas eram, entre outras, o anticomunismo, a divisão do mundo em áreas de influência e a definição da União Soviética como principal inimiga. É possível dizer que a própria ordem liberal emanada do conflito de oito décadas atrás tornou-se cláusula pétrea, acima dos partidos, na visão do Departamento de Estado.
Mas numa conjuntura em que a potência hegemônica se vê diante de um competidor à altura, a China, tudo muda. A partir de sua posse, em 20 de janeiro, Donald Trump chutou o balde. Sua atuação frenética tem alterado os fundamentos da diplomacia imperial. Ou seja, questionar alianças tradicionais, redefinir aliados e inimigos e repactuar consensos internos. O marco visível da reviravolta é a esquizofrênica guerra de tarifas, medida que sai do âmbito estritamente econômico e torna-se arma de chantagem política. “Agora eu mando no país e no mundo”, afirmou o republicano à revista The Atlantic, em tom de blague, no fim de abril. O objetivo seria a manutenção da hegemonia do dólar como moeda de reserva planetária, mesma lógica imposta na conferência de Bretton Woods, em 1944, quando representantes de 44 países tiveram de engolir a moeda estadunidense como unidade de troca internacional. A única concessão feita diante de 730 delegados presentes foi a de que o ouro seria o lastro metálico garantidor.
Duas décadas e meia depois, em 1971, diante da queda de dinamismo da economia dos EUA, o presidente Richard Nixon resolveu novamente colocar o mundo contra a parede. Em decisão unilateral, a Casa Branca rompeu a paridade dólar-ouro, gerando pânico nos mercados. Agora, Trump trava o terceiro contencioso mundial pela supremacia monetária, diante das ameaças chinesas de buscar um novo parâmetro para as transações internacionais. Estrategicamente, a Casa Branca tem objetivos bem definidos, o que não ocorre no caso das tarifas. Traçadas aparentemente sem planejamento, o que explica oscilações de taxas para produtos chineses que variaram de 45% a 145%, em menos de um mês, as porcentagens mostram hesitações na determinação de chantagear países de modo a forçá-los a sentar e negociar individualmente com os EUA. Esboça-se aí um novo padrão de diplomacia, na qual saem de cena as negociações multilaterais, no âmbito da ONU e de outros organismos, e entra um pretenso diálogo no qual a potência hegemônica exerce total superioridade sobre quase todos os interlocutores. O único que deteve o ímpeto de Washington foi a China.
Embora a geopolítica construída no pós-Guerra congregue quase duas centenas de países na Assembleia-Geral da ONU, a constituição do Conselho de Segurança e do poder de veto de qualquer um dos integrantes permanentes resultou de imposição estadunidense. O feito deu-se na conferência de Dumbarton Oaks, um mês depois de selados os acordos de Bretton Woods, em 1944. A supremacia do dólar e o Conselho de Segurança fazem parte de um único pacote de pressões que garantiria a constituição de um novo imperialismo. A ONU foi desenhada por Franklin Delano Roosevelt quando a economia dos EUA correspondia a cerca de 40% do PIB global. Hoje, esse porcentual caiu para 26,5%. Foi planejada então para legitimar uma hegemonia atualmente em queda.
Quando se avolumam sinais de questionamento ou mesmo de isolamento de Washington na ONU, na Organização Mundial do Comércio, no Conselho de Direitos Humanos, na Organização Mundial da Saúde e em outras instituições multilaterais, a reação imediata é abandoná-las. Para Trump, tais instâncias representam amarras insuportáveis numa disputa contra um oponente poderoso. Seu governo segue à risca a máxima de que, numa batalha, a primeira coisa a ser questionada são suas próprias regras.
Quando a ordem do pós-Guerra foi definida, os EUA representavam 40% do PIB Global. Hoje, são 26,5%
A Casa Branca decidiu acertar suas contas com o mundo, redefinindo estratégias – o inimigo é a China, enquanto a Rússia sai da alça de mira –, mudando pactos e alianças –, a União Europeia e a Otan perdem prioridade nesse quadro – e jogando a América Latina de volta à posição de quintal, como afirmou o secretário de Defesa, Pete Hegseth, em entrevista ao canal de tevê Fox News no início de abril. As políticas em relação a Israel e ao Oriente Médio seguem intocadas, pelo peso do sionismo no establishment estadunidense.
Trump desmente a avaliação de Anderson, reproduzida nas primeiras linhas deste artigo. Seu governo suscita um processo de desglobalização e autarquização defensiva ao redor do mundo. As volatilidades no câmbio, nas Bolsas e nos mercados de ouro e na própria política doméstica expressam o choque disparado pela Casa Branca. As principais economias buscam formas de resistir. A Alemanha aposenta políticas de austeridade, o Canadá dá vitória a quem encarna o discurso anti-Trump nas eleições parlamentares, Claudia Sheinbaum alcança picos de popularidade no México ao se opor às investidas do vizinho, e por aí vai. O Brasil, por sua vez, até aqui não definiu uma linha clara de defesa.
A depender do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a adesão acrítica será o caminho. “Temos interesse de nos aproximarmos mais dos Estados Unidos. Fizemos isso na administração Biden e faremos isso na administração Trump”, declarou na segunda-feira 5. A frase está em linha com as principais decisões de Brasília em política externa: o País não exibe qualquer projeto de desenvolvimento, ao contrário do que fez nos anos 1930, diante da crise de 1929, no início dos anos 1970, quando enfrentou as turbulências do dólar e dos preços do petróleo, e em 2008, diante dos abalos nos mercados internacionais. Nos três casos, ampliou o gasto público e realizou políticas anticíclicas.
Agora não. Reafirmam-se dogmas de austeridade, aceita-se um acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia que pode impactar ainda mais a indústria brasileira, fontes oficiais alardeiam que as turbulências abrem oportunidades para a venda de soja à China, o ministro da Fazenda vai aos EUA negociar favores para as big techs instalarem data centers no Brasil e ampliam-se políticas de concessões de campos de petróleo e empresas de energia, entre outras medidas.
É isso mesmo? Em face da destruição de parâmetros civilizatórios, a saída é desmontar o Estado e voltar ao bom e velho fazendão de país dependente? A vida complica-se quando recuos e falta de ousadia aparecem encobertos pelo duvidoso manto da sensatez. •
*Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.
Publicado na edição n° 1361 de CartaCapital, em 14 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Adeus mundo velho’