A população brasiliense orgulha-se de dizer que mora em uma cidade que é Patrimônio Mundial da Humanidade. Não por menos: Brasília é o único centro urbanístico contemporâneo que figura na prestigiosa lista da Unesco. Em 1987, com apenas 27 anos de existência, foi elevada ao mesmo patamar de cidades seculares como Roma, Paris, Cidade do México e Cairo. E ser a mais jovem cidade desse rol nos colocava diante do desafio e do privilégio de vivenciar e construir a excelência de uma cidade moderna.

Nem tudo foram flores nesse processo. É preciso recordar a exclusão recorrente daqueles que colocaram a cidade de pé e dos que a fazem funcionar. Os ideais coletivistas do projeto de Lucio Costa foram prematuramente solapados pela ditadura, que não se furtou em acumular atrasos ao País. O que ajudou a concentrar melhores infraestruturas, equipamentos e serviços no Centro da cidade. Em Brasília, o problema fundiário, a irregularidade e a grilagem confundem-se com a história da cidade.

Nesse contexto aparece a relevância do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília, o tão falado PPCUB, mais uma das muitas siglas que precisamos aprender no dia a dia da capital da República. Um instrumento regulatório que reúne todo o regramento de ordenação urbanística e de preservação da cidade. Inclui instrumentos de proteção do patrimônio, normas de uso e ocupação do solo e estabelece planos, programas e projetos específicos para desenvolver, qualificar, modernizar e atingir a complementação desejável e sustentável desse conjunto urbano.

O PPCUB deveria servir para a preservação das áreas verdes, dos espaços comunitários, da preparação da cidade aos extremos climáticos que já são realidade e da garantia do direito à cidade, dentre outros. Infelizmente, na peça enviada à Câmara Legislativa Distrital pelo governador Ibaneis Rocha parece que foi priorizado apenas o “Plano”. O PPCUB do governo Ibaneis não é um plano de preservação, mas um grande plano de negócios, destinado, sobretudo, à avidez da especulação imobiliária.

A cada leitura do PLC detectavam-se problemas gravíssimos, como a ausência de um capítulo destinado ao disciplinamento de instrumentos de preservação, o que, a nosso ver, deveria ser o objetivo primordial. Mudanças no zoneamento de áreas públicas para o interesse privado, regularização de ilegalidades, alteração no gabarito de edifícios, retirada de atribuições fiscalizatórias do Poder Legislativo. Para nosso espanto e ao arrepio da Lei Orgânica do DF, a minuta previa projetos futuros para o conjunto urbanístico tombado a ser aprovados por meio de decretos, ou seja, sem passar por uma avaliação da Câmara Legislativa e, por conseguinte, pelo crivo da sociedade e das entidades de defesa do patrimônio. Tais “projetos futuros” são verdadeiros cheques em branco, entregues de bandeja à iniciativa privada, e podem estabelecer alterações substanciais no traçado urbanístico, avançando, inclusive, sobre as áreas verdes que compõem a nossa Escala Bucólica.

Mesmo com todos os problemas, apresentamos uma série de emendas ao texto no sentido de contribuir e garantir minimamente a proteção do patrimônio que não é só de Brasília e do Brasil, mas da humanidade. Mas a pressa no andamento dos ritos, sob escrutínio rigoroso de atores que manifestam dissabor em aceitar a independência dos poderes, faz pensar naquela frase brilhantemente cunhada por Caetano Veloso – a “força da grana que ergue e destrói coisas belas”. Toda a disposição para contribuir e todos os apelos por mais tempo para debater e para submeter a minuta do PPCUB a uma avaliação da Unesco, previamente à votação da matéria, não foram suficientes para frear o “tratoraço” patrocinado pelo governador Ibaneis Rocha.

As características singulares da cidade estão ameaçadas

O texto aprovado sugere aberrações como o crescimento do gabarito de edifícios sem estudos em torno do impacto ambiental que tal intervenção poderia promover, a permissão do aumento de altura dos hotéis situados na esplanada da Torre de TV, de 3 para 12 andares, a previsão de implantação de motéis e alojamentos nas quadras 900 Sul e Norte, em áreas originalmente destinadas a estabelecimentos de educação e saúde, a entrega de áreas verdes remanescentes à Terracap, abrindo caminho para a extinção de nossa Escala Bucólica, a possibilidade de instalação de indústrias de pequeno porte nas margens do Lago Paranoá, a possibilidade de habitações de alto padrão ao lado do Palácio do Jaburu. Até o encantador céu de Brasília está ameaçado com futuras intervenções.

Não resta dúvida: as características originais de Brasília, únicas no mundo, correm risco de graves descaracterizações, autorizadas, para nosso horror e espanto, pelo Plano que deveria prever a sua preservação. Caso isso aconteça, nossa cidade provavelmente entrará na Lista do Patrimônio Mundial em Perigo e, se nada for feito, perderá o título que tanto nos orgulha e nos distingue perante o mundo, não só pela excelência do urbanismo e da arquitetura, mas por se configurar em um ambiente urbano preparado para as mudanças climáticas, graças aos generosos espaços verdes e permeáveis que garantem o controle da temperatura local, dos ventos e das chuvas, assim como a recarga dos aquíferos.

Mesmo assim, enquanto “dormia a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações”, em 19 de junho, mesmo dia do aniversário de 80 anos do nosso eterno Chico Buarque, com 18 votos favoráveis e 6 contrários, a Câmara Legislativa do DF aprovou o PPCUB.

O conceito de Patrimônio Cultural da Humanidade traduz o entendimento de que sua aplicação é universal. Os sítios do Patrimônio Mundial pertencem a todos os povos do mundo, independentemente do território em que estejam localizados. Esse é o princípio basilar que deveria orientar o PPCUB.

O projeto que vai à sanção do governador ainda está em disputa. A mobilização de amplos setores da sociedade em defesa de Brasília e a provocação judicial para barrar inconstitucionalidades serão instrumentos utilizados na luta pela suspensão dos efeitos desse PPCUB e por uma cidade democrática, pois foi essa a energia que formou esta cidade, em tempo recorde, em condições tão adversas. O esforço das gerações em construir esse patrimônio não pode ser em vão. Brasília não está à venda. •

 *Deputado distrital (PT-DF).

Publicado na edição n° 1318 de CartaCapital, em 10 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Brasília não está à venda’

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Última Atualização: 04/07/2024