Dos pastores mirins 

Por Lelê Teles*

“eu calcei sapato de fogo, não posso me controlar, é que o varão do movimento chegou pra movimentar.” paulo andré

depois de uma deliciante ducha morna e espumosa, aproveitei que estava sozinho em casa e, nu como vim ao mundo, me preparei para descabelar o palhaço.

saquei a espada de grayskull e comecei a amolá-la, como faz um samurai antes de uma sangrenta batalha.

a masturbação, todos os hedonistas o sabemos, também tem lá suas preliminares.

a primeira coisa a se fazer é silenciar da memória as lembranças broxantes: desaparecem imagens de boletos, rostos harmonizados, cachorros em restaurantes, mulher passando batom em estátua…

e surgem, vivas e vúlvicas, figuras de mulheres nuas e desejantes, duas freiras se esfregando, travestis transando em banheiros químicos, anãs se banhando em golden showers…

na mente de um homem ou de uma mulher hedonistas, sozinhos entre quatro paredes, surge toda sorte de parafilias.

você bem o sabe, seu hipócrita pecador.

com essas excitantes e masturbativas imagens povoando minha mente, comecei a me fazer carícias.

ah, que delícias!

o corpo começou a ficar abrasivo e saliente, foi quando ouvi um barulho inusitado na cozinha.

plim, plaft, pluft…

caiu um garfo, depois uma panela e uma faca de mesa.

em seguida, depois de um longo silêncio, ouvi o barulho de uma xícara se despedaçar no chão.

“com mil diabos”, pensei.

eu estava seguro de que as janelas estavam todas fechadas, e as louças, também eu o sabia, estavam bem guardadas no armário.

como poderiam ter caído?

com os pelos todo eriçados, o falo rígido e falante, e ainda nu como um recém-nascido, fui à cozinha e vi o que os meus olhos jamais se esquecerão de terem visto: talheres, copos e pratos caíam do nada.

da cristaleira da sala, taças saltavam, se estilhaçando no chão, num inexplicável suicídio vídrico.

“é satanás”, pensei.

e num pensei duas vezes.

voltei ao quarto – já flácido e tremendo -, botei uma camisa de botão, uma calça social, calcei um sapatênis e meti o pé pra igreja.

cristo em chamas, esse é o nome da congregação aqui do bairro.

as portas estavam abertas, fiéis fidelíssimos cantavam e dançavam: louvores, glórias e aleluias.

entrei.

por conta do nome da igreja, pensei que encontraria lá dentro a imagem de jesus pegando fogo. qual nada, ali quem ardia era satanás, humilhado por um pastor que mal havia saído das fraldas.

o souvenir de sacerdote, bíblia sob o sovaco, enfrentava a besta-fera com incrível valentia.

“louvado seja o nosso senhor jesuscristo”, gritei em silêncio, diante de tão miraculosa epifania.

aquele menino era capaz de fazer parar uma tempestade.

de terno e gravata, como manda o figurino, o pastorzinho apascentava um enorme rebanho de almas infelizes e engilhadas.

fiquei maravilhado.

no palco, uma senhora de cabelos longos e sem corte, vestindo um vestido estampado, rosnava como um diabo humano: as mãos retorcidas pra trás, feito uma caipora, o tronco curvado, os cabelos revoltos, um horrendo esgar de boca e aquela voz gutural típica de cantoras de death metal…

“ajoelha diante do filho de deus, satanás”, gritou o pequeno pastor, com fala de homem e voz de menino.

a mulher-diabo rosnou, rosnou, deu uma volta sob si mesma e caiu genuflexa, ofegante.

o gravatinha, gritando ao microfone, falou numa língua que só ele e o demônio entendiam: ofi de kingue, de pauer, de besti, decanta rabassúria…

ao ouvir essas palavras mágicas, satã se sacudiu todo e saiu imediatamente do corpo da mulher, que recobrou os sentidos e voltou a falar com voz humana.

“aleluia”, gritaram as velhas virgens.

meus olhos não acreditavam no que viam, meus ouvidos duvidavam do que ouviam, mas meu coração aceitava tudo.

minh’alma transbordava de felicidade e júbilo.

aproximei-me de uma levita, que levitava leve como uma anja ao meu lado, e sussurrei: “irmã, pelo sangue do cordeiro de deus, responda-me, esse pastor é anão?”

“ah, não, de novo isso, homem de pô café”, resmungou a varoa, virando-se para o outro lado, se benzendo.

e não era mesmo, percebi logo em seguida. as pessoas com nanismo têm um traço fenotípico que as caracterizam, parecem que são todas da mesma família.

tratava-se, eu não tinha mais dúvida, de um imberbe pregador.

“mas ele não é ainda muito jovem para pregar?”, perguntei à dona zuleide, da farmácia, que orava do meu lado esquerdo.

“ora, ora, ora”, explicou-me a irmã zuleide, “no tibet, os dalai lamas são escolhidos ainda crianças”.

não tive como discordar.

“os gregos”, ela prosseguiu, “pintaram o amor menino. cupido é sempre retratado na forma de uma criança alada. o amor puro é infantil”.

antes que eu dissesse qualquer coisa, seo estrelo, um conhecido tocador de zabumba do bairro, se meteu na conversa e completou: “jesus era ainda um molecote com seus minguados doze anos quando adentrou ao templo e deu um sermão nos fariseus”.

concordei com um menear de cabeça.

alguém tocou-me o ombro por trás, me virei e vi comadre florzinha, que havia abandonado o candomblé e se convertido ao neopentecostalismo, ela sussurrou-me ao ouvido: “os erês são entidades mirins que povoam as casas de santo, assim como os ibejis, por que os pastores não podem vir na forma de um menino”.

pensei nos presépios de natal e no menino jesus, deitado numa manjedoura, deísticamente.

lembrei-me do pequeno buda, da virgem maria aparecendo pra três crianças em portugal, do cristo chamando para si as criancinhas…

sim, faz todo sentido, disse para mim mesmo, boquiaberto.

jamais em toda a minha vida imaginei encontrar teólogos tão persuasivos dentro de uma igreja.

refleti sobre o que me disseram: se é deus quem fala pela boca do pastor, então, pouco importa sua idade ou sua estatura, ali ele é apenas um cavalo de deus, um pônei que seja, o que importa é que ele apenas abre a boca, quem fala é o senhor.

com isso não quero dizer que um mudo pode subir no púlpito e, encantado pelo espírito santo, passar a proferir palavras proféticas.

percebam que o pastor mirim conserva sua voz original de criança, mas as ideias são divinas e divinatórias.

deus é o verbo, não a voz.

o mini pastor, provando que não era um impostor e que deus interceda por ele, aproximou-se de mim e me dedurou para a audiência toda:

“esse irmão aqui foi pego em tentação, não foi irmão?”

eu engoli seco.

“se levante, irmão, pro povo de deus ver a sua cara. o diabo habita sua casa não é meu filho?”

e esticou-me o microfone.

“se lá ele mora eu não sei, grande sacerdote, mas estava lá quando eu saí”.

o pastor, que parecia de tudo saber, prosseguiu pastoreando: “satanás surgiu na sua casa em forma de espírito ou de fantasma, meu filho?”

“é a minha primeira vez na igreja, pastor, não sei ainda diferenciar um do outro”.

“mas isso é muito fácil, meu nobre varão, não é pastor sicrano?”, perguntou ao seu auxiliar. e completou, tocando-me na testa com suas pequenas mãos ungidas:

“atentai bem, filho do vento, se a visagem surgir coberta por um lençol, é fantasma”, ensinou-me, “porém, se não há lençol por cima, é espírito”.

“pois era espírito”, eu disse a ele, “porque era invisível, tudo o que eu via eram louças caindo, e se caíam era por que alguém ou algo as derrubava”.

o pastor deu o diagnóstico: “trata-se de espíritos zombeteiros, irmão, e apareceram para fazer arruaça e infernizar sua vida”.

perguntei como faria para me livrar deles.

ele olhou pro auxiliar que sacou, do bolso do paletó, uma plaqueta com um qr code.

“pague o dízimo e eles serão todos dizimados”, profetizou o pequeno profeta.

“mas, pelas barbas de abraão, quanto me custará essa sessão de desencapetamento doméstico?”, eu quis saber.

“siga o que ordena o seu coração”, ele me orientou sabiamente, “mas atentai bem, não são um e nem dois espíritos, eles são uma legião”.

fiz o pix.

no desespero, dei tudo o que tinha, era como se tivesse entregado ao pastor mirim o meu cajado, a minha túnica e a minha espada.

“agora vá e não peque mais”, ordenou-me.

fui.

e nunca mais voltei.

voltei a cair em tentação, mas os demônios, milagrosamente, nunca mais apareceram.

palavra da salvação.

*Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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Last Update: 08/05/2025