Tarifaço, guerra tecnológica e contenção. EUA querem barrar desenvolvimento chinês, mas análise mostra que a China não é a URSS — e o mundo mudou.

Por Diego Pautasso, em 8 de maio de 2025

A frase “É a economia, estúpido” foi pronunciada por James Carville, estrategista da campanha de Clinton, em 1992. Naquela época, ele chamava a atenção para não se distrair com assuntos secundários, dando ênfase à economia e ao cotidiano das pessoas. Como veremos, em analogia à famosa frase, a variável determinante da ordem mundial hoje é a China. É o elemento de descontinuidade que está a impor limites intransponíveis aos objetivos de Trump e dos EUA.

É fato que a história guarda analogias com o passado, por vezes se repetindo como farsa, como diria Marx. O atual tarifaço de Trump não é absolutamente novo na trajetória dos EUA, e tentar decifrá-lo implica buscar as continuidades e mudanças, de modo a entender movimentos conjunturais e estruturais.

Os EUA e golpe invisível

Depois de ter sido o epicentro do ciclo de crescimento do Pós-Guerra, os EUA se viram diante de impasses geopolíticos e geoeconômicos. Nesse contexto dos anos 1970-80, Washington impôs uma grande reconfiguração da ordem mundial. Foi um verdadeiro golpe invisível que redefiniu à fórceps as regras do jogo internacional visando reafirmar sua hegemonia.

Nesse sentido, primeiramente, os EUA colocaram fim, unilateralmente, ao Acordo de Bretton Woods (1971) e ainda impuseram uma taxação sobre importações de 10%, como resposta aos déficits comerciais crescentes e à redução das reservas de ouro. Sem lastro em ouro, o dólar se desvalorizou e se expandiu globalmente ancorado no petróleo (petrodólar).

Segundo, o governo dos EUA desencadeou uma política de juros altos do Federal Reserve (FED) no início dos anos 1980 para administrar a inflação e atrair capitais para fortalecer o dólar. Esse foi o estopim para a Crise da Dívida (1982) e para a interrupção dos ciclos de desenvolvimento em países periféricos, como o Brasil. Esse espiral de endividamento, resultando até em moratórias, foi a antessala para a imposição de políticas neoliberais irradiadas a partir do Consenso de Washington (1989), sob tutela do FMI. Tudo isso contribuiu para reforçar o poder financeiro dos EUA e a dependência global frente ao dólar.

Terceiro, os EUA forçaram o Acordo Plaza (1985) a seus aliados — Japão, Alemanha Ocidental, França e Reino Unido —, levando à valorização de suas respectivas moedas. Persistia o objetivo de reduzir o déficit comercial diante de seus principais competidores e evitar a perda de posições relativas da economia estadunidense.

O fato é que os EUA promoveram um grande reordenamento econômico global que também possuía objetivos geopolíticos. Além de conter o crescimento de aliados (Japão e Alemanha), visava projetar a agenda neoliberal para a periferia do sistema e enfraquecer a URSS. Nesse último caso, a redução dos preços do petróleo nos anos 1980 baqueou a economia soviética, justamente quando Washington recrudescia a corrida armamentista (Guerra nas Estrelas) e apoiava grupos insurgentes anti-socialistas no Afeganistão, Nicarágua, Angola, Moçambique e outros. Esse contexto e os descaminhos das políticas reformistas de Gorbachev (1985-1991) contribuiram decididamente para o colapso do campo soviético.

O martelo e o prego

Diz o ditado que, se tudo que você tem é um martelo, tudo parece prego. Ora, inequivocamente, os EUA percebem uma perda relativa de poder e Trump está disposto a reordenar a ordem mundial. Embora persistam os problemas estruturais, como os déficits crescentes, a realidade internacional mudou, e a China é um desafiante de novo tipo.

Os tarifaços de Trump representam um movimento mais amplo voltado à reconstrução do ordenamento de poder global. Tal como outrora, há uma pressão sobre aliados, como União Européia, Canadá ou México, e até ameaças territoriais, como no Canal do Panamá e na Groelândia. Também como antes, um recrudescimento da contenção contra o principal competidor: a China. Desde a Guerra Comercial, desencadeada em 2017, passando pela Batalha dos Chips, e agora na escalada de tarifas, Washington está determinado a interditar o desenvolvimento chinês.

Contudo, a China não é a URSS e o mundo mudou drasticamente – e se não é prego, talvez não funcione o martelo. A China, em 2024, já era o maior parceiro comercial de 150 países; a participação das exportações caiu de 36% em 2006 para cerca de 19% na atualidade; e a fatia dos EUA no comércio exterior chinês (importação e exportação) caiu de um pico de 26% em 1999 para cerca de 10% hoje em dia.

A China serve de alternativa aos aliados dos EUA — coisa que a URSS não conseguia ser. A China tem meios de financiar o desenvolvimento e absorver parte das exportações de outros países sobretaxadas nos EUA — o que não ocorria com o rival da Guerra Fria. Ademais, há muitos grupos e fóruns, como RCEP, FOCAC, OCX, CELAC-China e muitos outros, que suprem processos de integração, desenvolvimento e governança. Aliás, a Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês) já se converteu numa outra globalização liderada por Pequim, com mais de 150 países envolvidos — absolutamente diferente do cerco a que estava submetido o bloco soviético.

Inclusive o dólar, reserva de valor e meio de pagamento, convertido em instrumento de coerção, enfrenta alternativas inexistentes naquele contexto. São os casos de políticas como a criação de moedas nacionais digitais — como o e-CNY e o Projeto mBridge promovidos pela China —; os acordos bilaterais de comércio em moedas locais, muito avançado no comércio sino-russo; a criação de sistemas de pagamentos alternativos ao SWIFT, como o CIPS chinês; e a diversificação das reservas cambiais pelos Bancos Centrais, como a aquisição do ouro e diminuição dos títulos do Tesouro dos EUA.

A liderança tecnológica estadunidense, inconteste nos anos 1970-80, atualmente encontra um rival de peso. A China emergiu como uma potência tecnológica e geopolítica muito mais complexa e desafiadora do que a União Soviética. O país tem disputado a fronteira tecnológica em áreas como 5G, Inteligência Artificial, baterias, veículos elétricos, trens de alta velocidade, economia digital, entre outros.

Da mesma forma, hoje os EUA não conseguem impor ajustes neoliberais por meio do FMI. Ao invés de ser o maior comprador de petróleo, dessa vez é a China o principal mercado. Até em termos militares, a retirada do Afeganistão e a derrota na Ucrânia, com toda a mobilização da OTAN, sinalizam uma mudança importante de correlação de forças. Os sinais estão por toda parte.

Palavras finais

Tudo indica que estamos diante de uma mudança sistêmica estrutural. A diferença crucial dos novos arranjos de poder se relacionam diretamente com as forças profundas movidas a partir de Pequim, que escapam aos desejos e ações de Washington de reordenar o mundo a sua imagem e semelhança.

A presunção imperial dos EUA supôs que poderia resolver o problema com marteladas, decorrente do desconhecimento completo sobre a realidade chinesa e das novas configurações globais de poder. A China é, por essas e por outras, o polo anti-hegemônico que limita os ímpetos estadunidenses.

***

Diego Pautasso é pós-doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (2018), doutor (2010) e mestre (2006) em Ciência Política, além de graduado (2003) em Geografia pela UFRGS. É professor do Colégio Militar de Porto Alegre e diretor de pesquisas do Centro de Estudos Avançados Brasil-China (CEBRAC). Autor dos livros “Imperialismo – ainda faz sentido na Era da Globalização?” e “China e Rússia no Pós-Guerra Fria”, bem como coautor de “A China e a Nova Rota da Seda”, “Teoria das Relações Internacionais: contribuições marxistas” e “Domenico Losurdo: crítico do nosso tempo”. E-mail: [email protected]

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 08/05/2025