Em 25 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi torturado e assassinado nas dependências do DOI-CODI em São Paulo. Durante anos, o Estado sustentou a versão de suicídio, amparado por laudos forjados por instituições oficiais. A perícia, que deveria analisar e proteger os fatos, foi usada para acobertar o crime. Quase 50 anos depois, a estrutura da perícia oficial brasileira ainda carrega os reflexos dessa distorção de origem.

Essa é uma das feridas profundas da nossa democracia. A condução de uma perícia sob controle da polícia, especialmente em casos em que a própria polícia é investigada, é uma contradição. Essa decisão não deve ser vista somente como algo legal, mas também, como uma decisão política. Não há como confiar plenamente em um sistema que investiga a si mesmo. A consequência dessa distorção tende a ser a impunidade.

Vimos isso acontecer, mais uma vez, em 2021, no Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Foram 28 mortos durante uma operação policial. As provas sumiram, os corpos foram retirados antes da perícia, os laudos não trouxeram respostas. A apuração virou uma colcha de retalhos e, no final, ninguém foi responsabilizado. Casos como esse não são exceção: são expressão de um sistema que ainda tolera a manipulação da prova técnica, sobretudo quando os autores da violência são agentes estatais.

Nesse contexto, vale lembrar o dossiê Perícia e Direitos Humanos: Recomendações para o Aperfeiçoamento da Perícia Criminal, elaborado pelo Instituto Vladimir Herzog em parceria com a Fundação Friedrich Ebert Brasil. O documento retoma a recomendação nº 10 da Comissão Nacional da Verdade, que propõe a desvinculação das perícias oficiais das polícias civis e das secretarias de segurança pública, destacando que a autonomia pericial deve envolver liberdade técnica, protocolos transparentes, compromisso com os direitos humanos e alinhamento a padrões internacionais.

Negligenciar esses pontos é aceitar que erros, ou mesmo crimes, passem impunes. É manter uma estrutura que, muitas vezes, serve mais para proteger os agentes do Estado do que para proteger a verdade.

O dossiê analisa também os impactos da formação limitada dos peritos e as fragilidades da cadeia de custódia, mostrando como esses fatores contribuem para o enfraquecimento das garantias processuais e a reprodução de injustiças históricas. A ausência de normativas nacionais, a falta de formação continuada e a inexistência de protocolos unificados comprometem a credibilidade da perícia e ampliam a desigualdade no acesso à justiça.

Outro ponto sensível abordado é o uso de bancos de perfis genéticos, que exigem diretrizes éticas e controle rigoroso. Em um país marcado por desigualdades estruturais e histórico de criminalização seletiva, o mau uso dessas ferramentas pode aprofundar violações de direitos, ao invés de combatê-las. Garantir critérios transparentes, fiscalização independente e proteção de dados é condição básica para que a ciência forense esteja a serviço da justiça e não da discriminação.

Entre as referências que orientam essa agenda de transformação, destacam-se também diretrizes internacionais, como o Protocolo de Minnesota, elaborado pelas Nações Unidas, que estabelece padrões para a investigação de mortes potencialmente ilícitas, sobretudo em contextos de violência estatal. Embora o Brasil ainda não o tenha adotado como política pública, seus princípios — como a preservação da cena do crime, a atuação técnica independente e o direito das famílias à informação — reforçam a urgência de uma reforma pericial que assegure integridade, transparência e compromisso com os direitos humanos.

É preciso repensar o lugar da perícia no sistema de justiça. Não como um detalhe técnico, mas como um pilar decisivo na produção de provas, na garantia de direitos e na preservação da memória coletiva. Em um país marcado por tantas mortes mal explicadas e violências institucionalizadas, fortalecer a perícia é também enfrentar o passado e decidir que tipo de futuro queremos construir.

O direito a uma perícia autônoma, qualificada e comprometida com os direitos humanos é, em última instância, o direito à verdade. E sem verdade, não há justiça possível.

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Last Update: 08/05/2025