Este espaço tem sido reiteradamente utilizado para destacar conquistas do Sistema Único de Saúde, como o caso do SAMU, do Programa Nacional de Imunizações, da Farmácia Popular ou do Brasil Sorridente, que, após 20 anos de funcionamento, fazem parte do dia a dia de milhões de brasileiros.
Na mesma época em que essas políticas foram implantadas, ainda durante o primeiro governo Lula, outra importante ação começava a sair do papel: a criação da Hemobrás, a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia. Uma iniciativa extremamente ousada, liderada pelo senador Humberto Costa, ministro da Saúde da época, de cuja equipe tivemos a honra de participar.
A surpresa foi geral quando o presidente Lula anunciou que a nova indústria de medicamentos seria implantada na cidade de Goiana, em plena Zona da Mata Norte de Pernambuco. Em um cenário dominado pelas plantações de cana-de-açúcar, cercado pela pobreza que sempre marcou essa atividade de monocultura, foi erguido um parque fabril com indústrias extremamente modernas e equipamentos de última geração.
O que não se sabe ainda hoje, mesmo entre líderes empresariais, gestores públicos e profissionais de saúde, é que a Hemobrás nasceu do zero, em um país que praticamente não produzia hemoderivados. Para fabricar esses medicamentos, a partir do fracionamento do plasma humano, foi necessário um processo de transferência de tecnologia que durou mais de dez anos. Os profissionais foram preparados no exterior, em países como França, Suíça e Alemanha, municiando o Nordeste de inovação, ciência, pesquisa e tecnologia.
Isso explica, em parte, o fato de muitos desconhecerem o que é e qual a importância da Hemobrás, que se transformou em uma empresa extremamente importante para o Brasil. Uma indústria de medicamentos 100% estatal, com quase 800 funcionários, lucrativa, que apenas nos dois últimos anos repassou 124 milhões de reais ao Tesouro Nacional referentes aos dividendos operacionais e que faz parte do seleto rol de Empresas Estratégicas de Defesa.
Os processos de transferência de tecnologia das duas fábricas que formam o parque fabril da Hemobrás, de hemoderivados e de recombinantes, ainda estão em curso, mas em etapa final. Todavia, há vários anos a estatal fornece imunoglobulina, albumina e os fatores coagulantes VIII e IX para o SUS, levando mais qualidade de vida para milhões de brasileiros acometidos de doenças raras como a hemofilia e a Síndrome de Guillain-Barré, ou no tratamento de grandes queimados, doenças renais ou no tratamento de pacientes de UTI.
A existência da Hemobrás jogou para baixo os preços dos medicamentos hemoderivados. Só como exemplo, com a estatal fazendo parte do jogo que, até então, era dominado pelas multinacionais, o preço da Unidade Internacional (UI) utilizada como medida dos medicamentos recombinantes caiu de 1 dólar para 1 real, economia considerável para o SUS.
A previsão é de que, até o início de 2027, a Hemobrás domine todas as etapas de produção dos hemoderivados e recombinantes. E quando as duas fábricas estiverem operando com capacidade máxima, cada uma delas significará uma economia de 1 bilhão de reais por ano ao Ministério da Saúde, fazendo diferença para a balança comercial.
Diante desse contexto, dá para a gente dizer que o sonho pensado lá atrás, no começo do século, tornou-se uma feliz realidade. Mas ainda há muito por vir, com 600 novos empregos nos próximos anos e uma produção capaz de atender a praticamente toda a demanda do SUS, com a possibilidade, inclusive, da ampliação do cardápio de medicamentos produzidos em Goiana.
Vinte anos depois do anúncio da Hemobrás, a primeira grande empresa que se instalaria na Mata Norte de Pernambuco, o município de Goiana conta com indústrias de automóveis e de vidros, entre outras, e passou a ter o quarto maior PIB do estado. A cidade, outrora decadente, teve seu comércio e os serviços fortalecidos.
A Hemobrás é um sonho que se tornou realidade e é muito mais do que uma indústria de medicamentos. É uma prova cabal de que uma boa ideia, quando colocada em prática com a missão de servir aos interesses daqueles que mais precisam, pode significar uma poderosa ferramenta de cidadania, de inclusão e de transformação social.
Publicado na edição n° 1318 de CartaCapital, em 10 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A ousadia da Hemobrás”.