Glória, sangue e lágrimas na Europa Oriental. A Praça Vermelha é o local de celebrar a derrota do nazifascismo

por Márcio Sampaio de Castro

Há exatos 80 anos, uma das ideologias mais abjetas inventadas pela humanidade era derrotada em seu próprio ninho. O nazifascismo era esmagado por um esforço combinado que a oeste reunira tropas multinacionais lideradas pelos primos anglo-saxões, EUA e Reino Unido, e a leste contara com o esforço titânico do multiétnico Exército Vermelho.

Sim, em maio de 1945, a ideologia havia sido derrotada e esmagada. Eliminada, não.

O genial Stanley Kubrick, menos de vinte anos após o encerramento das hostilidades, trazia em seu filme Dr Strangelove (1964) a personagem título da história, um cientista especialista em energia atômica resgatado pelos estadunidenses ao final da guerra para auxiliá-los no desenvolvimento de seu arsenal nuclear. Preso a uma cadeira de rodas, Strangelove insiste em chamar o presidente fictício Muffley de “Mein Führer”, enquanto luta com a prótese de seu braço direito para que ela não suba inadvertidamente fazendo a saudação Sieg Heil, o que acaba acontecendo em mais de uma oportunidade ao longo da película. Em plena era de estado de bem-estar social e autocongratulações no Ocidente pela vitória das democracias sobre o obscurantismo nazista, Kubrick denunciava com sua personagem: “Eles ainda estão entre nós”.

Em tempos recentes, a débâcle do welfare state na Europa e nos EUA tem trazido à tona aquilo que o jornalista Paulo Henrique Amorim chamava de “os detritos da maré baixa”. Partidos de extrema-direita, discursos de ódio e uma indisfarçável intolerância apoiada numa suposta superioridade moral e racial têm ganhado espaço nas práxis políticas presentes naqueles países.

É diante desse cenário que a recordação e celebração das oito décadas da derrota do nazifascismo são tão importantes. E nenhum país no mundo é mais digno de fazê-las do que a Federação Russa. Os anos de Guerra Fria aliados a uma historiografia enviesada e às maravilhas de Hollywood produziram em boa parte da opinião pública global a noção de que o desembarque aliado no Dia D, em julho de 1944, salvou o mundo, selando a derrota do exército nazista. Em que pese a importante contribuição dos anglo-saxões e de seus aliados na frente ocidental, com menção mais do que honrosa aos mais de 100 mil aviadores que perderam a vida nos bombardeios estratégicos sobre a Alemanha hitlerista, foi o Exército Vermelho o grande vencedor da guerra na Europa. Deixemos que os números falem.

No desembarque nas praias da Normandia, na França, os aliados não totalizaram 10 mil baixas entre mortos, feridos e desaparecidos.  Para efeito de comparação, na batalha de Stalingrado, as estimativas chegam a cerca de 1 milhão de mortos para cada um dos lados. Ao final da guerra, de cada 10 soldados alemães mortos, 8 haviam morrido na frente oriental. Estima-se que tenham morrido até 27 milhões de soviéticos, sendo metade deles civis.  

No Ocidente, fala-se muito, além do Dia D, da retirada de Dunquerque, da Batalha da Inglaterra e até mesmo especula-se em profusão a respeito do por quê da derrota alemã em Stalingrado, resvalando num quase lamento. Cunhou-se o mito do “General Inverno”, esquecendo-se maliciosamente que a ocupação nazista do território soviético se estendeu de 1941 a 1944. Três invernos, três verões, três outonos e três primaveras!

Mas antes de nos aprofundarmos na carnificina da frente oriental, é necessário retomarmos alguns eventos precedentes.

A extinção da Revolução

A vitória do bolchevismo no antigo império russo em 1917 jamais foi aceita pelo Ocidente. Pouca gente sabe, mas entre 1918 e 1921 ocorreu uma guerra civil na Rússia entre comunistas e forças contrarrevolucionárias, que contaram com o apoio de forças expedicionárias enviadas por ingleses, franceses e estadunidenses. Somente ao final deste conflito é que surgiria em definitivo a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas).

A ascensão do nazifascismo na Alemanha com seu discurso francamente anti-bolchevista no início da década de 1930 não foi percebida como uma ameaça frontal aos interesses de Londres, Paris e Washington. Afinal, Hitler proclamava a União Soviética como uma ameaça existencial à civilização ocidental. Uma ameaça que precisava ser extirpada. 

Durante a chamada Guerra de Inverno (1939-1940) entre a Finlândia e a URSS, França e Inglaterra ofereceram garantias de apoio ao país nórdico, fornecendo armamentos dos mais variados tipos, de aviões a artilharia pesada, com a participação de voluntários de ambos os países nos combates. Algo muito similar ao que viria a acontecer na Ucrânia quase um século depois. Curiosamente, a historiografia esqueceu-se do apoio militar que os finlandeses dariam aos alemães, a partir da invasão nazista, ao cerco da cidade de Leningrado, onde mais de 1,5 milhão de pessoas morreram, muitas por inanição.

Ainda no período do pré-guerra, um verdadeiro choque de realidade viria para o Ocidente com o pacto de não-agressão Molotov-Ribbentrop assinado entre a Alemanha e a URSS também no ano de 1939. Esperava-se em Londres e Paris que a loucura nazista desabasse sobre as hordas vermelhas, como havia ocorrido dois anos antes na Guerra Civil Espanhola. Vejamos que a anexação da Áustria e da Tchecoslováquia no mesmo período foi tolerada muito provavelmente por haver um cálculo de que ao fim e ao cabo Hitler avançaria sobre Moscou. Mas o líder nazista, antes de comer o prato quente comunista, fazia questão de comer o prato frio da vingança pelo Tratado de Versalhes. Somente depois de humilhar franceses e ingleses, ele se voltaria para o leste.

A invasão da URSS

O dia do prato quente fatalmente chegou. Em 22 de junho de 1941, uma força multinacional composta por 3 milhões de soldados alemães, com o apoio dos exércitos romeno, búlgaro, húngaro e italiano, além dos corpos de voluntários compostos por croatas, belgas, espanhóis e franceses, invadiu o território soviético. Enquanto as ordens da chancelaria do Reich eram explícitas quanto à preservação de cidades como Paris ou Amsterdã no oeste, a invasão no leste deveria ser caracterizada pela máxima brutalidade. Em sua concepção, os nazistas estavam lidando com duas pragas ao mesmo tempo: os comunistas e os eslavos. Sim, a guerra no leste deveria ser uma guerra de extermínio e consolidação do Lebensraum, o espaço vital para a expansão da “raça ariana”. Ao final dela, os eslavos que eventualmente sobrevivessem seriam transformados em escravos. O clássico filme Vá e Veja (1985), de Elem Klimov, magistralmente mostra o terror do cotidiano nos territórios ocupados pelos nazistas com vilas inteiras queimadas e moradores fuzilados. É emocionante a cena de uma mãe escondida em um pântano juntamente com guerrilheiros da resistência que precisa decidir entre a vida de seu bebê, que chora por comida, e a vida das dezenas de pessoas que estão ali refugiadas com ela.  

Durante a guerra, quase um milhão de mulheres soviéticas serviram na linha de frente, atuando como membros do corpo médico, aviadoras, artilheiras, snipers, dentre outras funções. Às vésperas da invasão, o Alto Comando Alemão expediu uma ordem executiva no dia 6 de junho de 1941 que determinava explicitamente que qualquer mulher apanhada com o uniforme do Exército Vermelho deveria ser sumariamente executada. A mesma ordem seria expedida no dia 29 daquele mesmo mês pelo marechal de campo Gunther von Kluge, comandante do 4º Exército. Outros comandantes como Walter von Reichenau e Earnst Hammer baixaram ordens semelhantes, ao arrepio da Convenção de Genebra. Ainda que não houvesse ordens executivas específicas para isso, soldados judeus ou soldados com traços asiáticos apanhados como prisioneiros também eram com frequência sumariamente executados.  Dos cerca de 6 milhões de prisioneiros de guerra soviéticos capturados pelos alemães, metade não voltaria para casa ao final do conflito em virtude das brutais condições a que eram submetidos nos campos de prisioneiros do inimigo.

Quando o Exército Vermelho iniciou sua contraofensiva com a Operação Bragation, as novas ordens executivas do alto comando nazista determinavam que a Wehrmacht (o exército) deveria deixar para trás o máximo possível de destruição, arrasando toda a infraestrutura existente nos territórios outrora ocupados. Enfim, a historiografia ocidental do pós-guerra se ocupou de descrever o soldado soviético como um bárbaro assassino e estuprador, valendo-se exatamente da mesma narrativa produzida pelos nazistas. Esqueceu-se que o significado do nome Grande Guerra Patriótica evoca não somente a defesa de um território invadido, mas, sobretudo, a necessidade do enfrentamento de um inimigo que cruzou a fronteira para exterminar uma civilização inteira.

Celebrar os 80 anos do esmagamento dessa ideologia e de seu braço armado na Praça Vermelha é mais do que um direito, é um dever, ainda mais em tempos de revisionismo histórico e manifestações crescentemente abertas de simpatia a ela. Qualquer pessoa intelectualmente honesta e comprometida com a erradicação do nazifascismo ontem e hoje deveria nutrir alguma simpatia por essa comemoração.

Márcio Sampaio de Castro é mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. É professor nos cursos de Relações Internacionais e Propaganda e Marketing das Faculdades de Campinas (FACAMP), onde coordena o Grupo de Análise e Pesquisa sobre a China (GAP – China).

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Last Update: 07/05/2025