“Hoje em dia é assim, você vale o que tem, se não tiver nada, você não é ninguém”, canta MC Docinho, em apresentação do Pagode na Lata, realizado a cada 15 dias na região da Cracolândia, em São Paulo. O Bar da Nice, na Rua General Osório, é o ponto de encontro dos bambas do pedaço, vários deles frequentadores da maior cena aberta de consumo de drogas do Brasil, a persistir na paisagem paulistana a despeito dos esforços da polícia para enxotá-los de uma rua a outra. A música é um momento lúdico, mas também uma ferramenta de redução de danos, acreditam os profissionais da saúde que organizam o evento. Na festa, eles ficam afastados do crack, ao menos por algumas horas.

A poucos metros da roda de samba está o fluxo, a multidão de maltrapilhos que se movem em busca de mais uma tragada no cachimbo, tantas vezes retratado pela mídia com distanciamento. De dentro, o cenário revela-se menos caótico do que aparenta. Há organização, hierarquia e disciplina, com uma série de regras atribuídas ao tráfico. A informação circula tão rápido quanto pedra, todos os olhos estão atentos.

Durante o dia, o fluxo é menos volumoso, muitos usuários saem para trabalhar. Os que ficam parecem mais arredios, seja porque estão desde a noite anterior sem dormir, fazendo consumo de drogas estimulantes, seja pelo temor das violentas abordagens policiais, intensificadas desde que Tarcísio de Freitas anunciou a intenção de transferir a sede do governo paulista para a região. Para quem está de fora do fluxo, pode parecer o contrário, mas o ambiente é mais descontraído à noite, quando o espaço vira uma mistura de festa rave com mercado de pulgas.

Há uma infinidade de produtos à venda, exibidos em tapetes e caixotes pelo chão. Roupas, calçados, produtos de higiene, eletrodomésticos quebrados… Tudo é moeda de troca. “Fogãozinho, alguém tem um fogãozinho pra vender?” Levou algum tempo até alguém esclarecer que fogãozinho é um cachimbo mais elaborado, com estrutura de cobre, que permite manter a pedra acessa sem a necessidade de acrescentar cinzas de cigarro. Até as cinzas, por sinal, estão à venda no varejão da Cracolândia.

No centro desse aglomerado estão os “pratos”, barracas onde são vendidas as drogas: cocaína, crack, pasta-base e maconha, tudo em maiores porções, que dali se espalham fragmentadas por todo o território. Quem não tem 10 reais para uma pedra, pode comprar só a metade, por 5 reais. E se o orçamento for ainda mais baixo, pode-se comprar só o direito de uma tragada no cachimbo, por 1 real dentro do fluxo e 2 reais nos arredores. O Corote, bebida mais consumida pelos usuários, é vendido em tabacarias improvisadas, onde se pode comprar também piteiras, isqueiros e cachimbos.

Frequentadores da Cracolândia, Cristiane da Silva Pinto e Flávio Cristiano ­Soares Rodrigues se conheceram no semáforo, onde trabalham limpando para-brisas de carros com rodinho. Depois de algum tempo, começaram a namorar e adotaram Bob, um filhote de Golden Retriever. Agora, após um ano e cinco meses de relacionamento, o primeiro filho do casal está a caminho. Ela, aos 34 anos, tem outros dois filhos, que vivem com o avô. Quando apresentou Flávio à família, os pequenos o aprovaram de primeira. “Foi uma surpresa, porque meu filho nunca se aproximou dos meus namorados.” Nove anos mais jovem, Flávio está no fluxo desde a adolescência e chegou a ser recrutado pelo tráfico. “Quando vi amigos sendo presos ou mortos, achei melhor fazer outra coisa.”

Apesar de ganhar a vida com o rodinho há tempos, Flávio tem experiência na construção civil e sonha com um emprego fixo. “Se a gente morasse na nossa quebrada, ia ser mais fácil ficar longe da droga, só que lá não tem emprego”, lamenta Cristiane. O casal persegue uma meta diá­ria de rendimentos nos semáforos, o suficiente para pagar o aluguel de 550 reais em uma pensão e comprar comida. Somente “o que sobra” pode ser destinado para pedra, maconha e cachaça. Ele não fuma todos os dias, e pega no pé da namorada para segurar a onda. “A gente já foi muito louco. Hoje, o que a gente mais quer é parar.”

O fluxo também é um local de encontros e desencontros. A comovente história de Rodrigo Antônio de Souza, de 38 anos, poderia render um filme, não fosse a dificuldade de fazer o público acreditar no insólito roteiro. Ainda adolescente, teve um filho, mas o rejeitou. O tempo passou, vieram outros relacionamentos, novos filhos, mas problemas financeiros e brigas familiares o arrastaram para a Cracolândia, de onde não consegue sair desde 2019. Ele faz bicos para sobreviver e orgulha-se de ter nove profissões, entre elas pedreiro, gesseiro, eletricista e manobrista, sua favorita. Há pouco tempo, fez amizade no fluxo com um rapaz de 20 e poucos anos. Dias depois, enquanto o jovem conversava com a mãe por ligação de vídeo, descobriu que o amigo era ninguém menos que o filho abandonado há duas décadas. “Fiquei em choque. O cara é meu filho, mó boa-praça, gente fina. Olha tudo que eu perdi.”

Apesar da relação conflituosa com os filhos, mantém uma conexão forte com a mãe, Maria Helena da Silva. Toda quinta-feira eles se falam por videochamada. Eventualmente, se encontram pessoalmente. “Minha mãe é tudo para mim”, diz emocionado. Dos quatro filhos, a Lorena é o xodó. Acabou de completar 6 anos e aprender que o “Tio Rodrigo”, na verdade, é o pai. “O dia que ela me chamou de ‘papai Rodrigo’ eu desabei. Chorei mais de uma hora”, conta, orgulhoso de estar construindo uma relação diferente com a mais nova.

Tiago Gomes Brito também se reconectou com a família há pouco mais de um ano. “Passei sete anos sem dar as caras, minha mãe achou que eu estava morto. Quando cheguei, foi a maior festa.” Desde que passou a fazer parte do Projeto Teto, Trampo e Tratamento, que oferece moradia a dependentes químicos sem exigir abstinência completa, reduziu o consumo e começou a buscar emprego. Hoje trabalha como montador de feiras de rua três vezes por semana e, nos demais dias, faz bicos pelos comércios da região. Ao se reaproximar dos parentes, descobriu que a irmã mais velha é assistente social e animou-se a estudar para seguir o mesmo caminho. “Para ajudar outras pessoas como eu.”

Renatinho terá de se desdobrar entre as aulas de francês e de percussão no conservatório municipal de SP

Diferentemente de muitos frequentadores da Cracolândia, Tiago está sempre bem vestido. É comum entrar no fluxo para comprar uma pedra e voltar com uma peça de roupa nova, a última foi uma camisa do Barcelona. Hoje em dia prefere a tranquilidade de casa, pois não gosta de fumar na rua. Quando chegamos para fazer a foto, o colega de quarto, Toretto, estava lendo um livro. “Pantera Negra, do filme, sabe? Tô no capítulo 22, é bem legal, uma leitura fácil.” Filho de pai boxeador, há poucos dias terminou de ler uma biografia do Muhammad Ali. “Mexeu muito comigo. Este é mais leve, parece um pouco Sidney Sheldon, tá ligada?”

O psicólogo Márcio Roque, que trabalha no Projeto Teto, Trampo e Tratamento, atualmente acompanha o tratamento de 25 usuários, entre eles Tiago e Toretto. “A partir do momento que eles têm uma moradia digna, um quarto só deles, o consumo de crack despenca”, afiança. “A pessoa passa a ter outras coisas a que se dedicar. O simples fato de a pessoa acordar numa cama, e não no meio do fluxo, já faz toda diferença, porque a primeira coisa que ela vai fazer é se alimentar, tomar banho.”

Muitas organizações da sociedade civil e grupos religiosos realizam atividades de redução de danos na Cracolândia. Com um projetor instalado em um carrinho de supermercado, o coletivo ­Cinefluxo exibe filmes para a turma. Outros grupos distribuem preservativos, piteiras, ­absorventes, água e alimentos – esse último item talvez tenha de ser excluído da lista se prosperar a higienista proposta do vereador bolsonarista Rubinho Nunes, a propor multa de 17 mil reais para quem distribuir comida a pessoas em situação de rua sem autorização da prefeitura. Na tentativa de disciplinar o fluxo, autoridades municipais e estaduais decidiram instalar grades na Rua dos Protestantes para delimitar o local que poderia ser ocupado pelos usuários. O governador Tarcísio de Freitas chama a iniciativa de “Corredor da Saúde”, sob a alegação de que a estrutura facilita a abordagem social e médica. Na prática, é mais um gueto que precisa ser desocupado duas vezes ao dia para a passagem da equipe de limpeza. Se os usuários tardam a sair, a polícia encarrega-se de acelerar o processo com truculência, spray de pimenta e balas de borracha.

“Essa violência só deixa todo mundo mais revoltado”, afirma Renato Oliveira Júnior. Não foi fácil encontrar um espaço na movimentada agenda de Renatinho, como é conhecido. “Tenho aula de Francês. Podemos falar outro dia?” C’est pas ­possible? Não era um gracejo para justificar a falta de tempo ou de interesse. Ele realmente tem aulas de Francês, ministradas por outro frequentador da Cracolândia, que era professor na França, montou uma turma e, agora, cobra 20 reais por aula.

Esta é, por sinal, apenas uma faceta do multitalentoso Renatinho. Dançarino desde os 4 anos de idade, cresceu em meio à música. Ainda criança, venceu um concurso de calouros da tevê. A mãe guardou o dinheiro para ajudar a pagar as mensalidade da faculdade de Educação Física, que ele cursou por dois anos e abandonou quando passou a usar cocaína. “Foi aquela história de amor ao primeiro tiro. Algum tempo depois estava vendendo a geladeira de casa para comprar pedra e fui expulso de casa.” À época, ele buscou tratamento e ficou meses internado, mas, ao sair da clínica, foi direto para a Cracolândia. Hoje, aos 33 anos, já passou por 24 internações.

“Não adianta forçar, a pessoa tem de querer. Não é simples, é um processo que vai acontecendo. Já vi muita gente parar sem ser internada”, conta. Renatinho participa das atividades de vários coletivos de redução de danos, além de fazer aulas de Música e Fotografia. Toca surdo, pandeiro e tamborim, está ansioso para aprender cuíca. Com um instrumento na mão e uma coroa na cabeça, reina absoluto no pedaço. Recentemente, passou num edital da Escola de Música de São Paulo, o Conservatório Municipal, e no próximo semestre começará as classes de percussão. Há um ano perdeu a mãe, seu único vínculo familiar, e diz que não se vê mais fora do fluxo. “Mesmo se eu parar de fumar, não quero sair daqui. Quero trabalhar no fluxo para ajudar na recuperação de outros.”

Muitas mulheres se sentem mais protegidas no fluxo do que nas ruas da cidade

Quilombola do interior do Rio Grande do Sul, Míriam, de 42 anos, desenvolveu uma engenhosa maneira de ganhar a vida no fluxo. Inspirada no conceito de economia circular, passou a coletar roupas sujas, descartadas por outros usuários, para lavá-las e vendê-las. “Aqui tem muita coisa boa, de marca. Dizem que as pessoas também são o que vestem, então acho que contribuo para a autoestima delas.” Com seu simbólico telefone celular de salto alto, atrai a atenção da clientela e parece bastante antenada ao debate político, fala de reforma agrária à especulação imobiliária no Centro de São Paulo, a mesma que estaria por trás do fechamento de antigas pensões no bairro da Luz, sob a justificativa de que abrigam escritórios do tráfico. “Vai vendo, daqui a pouco erguem um prédio novo lá. Sou bem informada.”

Depois de várias passagens na cadeia, Carla, uma mulher transexual de 50 anos, aponta a Cracolândia como um dos poucos lugares onde ela se sente aceita e livre. Atualmente, consegue pagar o aluguel de uma modesta pensão na região e garante que não moraria “em nenhum outro lugar do mundo”. Já a travesti Rachel abandonou o crack há mais de 15 anos. “Tenho nojo até do cheiro”, diz. Apesar de estar limpa, a vida no fluxo a fascina. Com uma cartela de clientes fixa, ela diz que não precisa mais se expor na prostituição das ruas. “Por que eu colo no fluxo? É animado, sempre tem agito.” Hoje, sua família são as amigas travestis com quem convive. “A gente se junta, cozinha, bebe e fuma maconha boa.”

Várias mulheres garantem que a vida no fluxo é mais segura que na rua, onde estariam mais vulneráveis à violência sexual. Para a antropóloga Amanda Amparo, existe no território um instinto de “proteger uns aos outros”. Ela pesquisa as relações sociais na Cracolândia há anos e identificou, no desenvolvimento de sua tese de doutorado pela USP, uma similaridade desse “ajuntamento de pessoas vulnerabilizadas” com os antigos quilombos. “A maioria dessas mulheres é de negras, pobres, com baixa escolaridade e empregabilidade. O tempo inteiro elas estão resistindo apenas com seu corpo. Elas buscam o encontro, não o isolamento.” •

Publicado na edição n° 1318 de CartaCapital, em 10 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Quilombo paulista’

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Última Atualização: 04/07/2024