São 8 da manhã em Nashville, no Tennessee, e a escritora Jane Smith está toda entusiasmada. “Lavei o rosto”, brinca. O cachorro dela, Max, estrela dos vídeos semanais postados no canal do YouTube de sua livraria independente, a Bookstore, está acomodado no sofá, atrás dela. “Sou uma livreira. É isso que eu faço”, diz, quando puxa a conversa para seu novo romance, Tom Lake. “Sou obcecada pelos livros de outras pessoas.”

Dizer que Jane é fervorosa em relação a livros não é um mero clichê. Em um de seus ensaios, ela compara seu zelo ao de um devoto que conheceu há muitos anos e que passava todos os dias proclamando seu amor a Deus para desconhecidos no aeroporto de Chicago. “Eu ficaria num aeroporto para dizer às pessoas o quanto adoro livros – lê-los e escrevê-los –, garantindo que outras pessoas se sentissem confortáveis para também lê-los e escrevê-los.”

Nerd de livros que foi “criada por freiras”, e acredita que a maioria das pessoas é essencialmente decente, Jane não é bacana nem avançada. Mas frequenta a realeza de Hollywood e é amiga de praticamente todos os escritores americanos vivos. Ela até conhece “um pouco” Joe Biden. “Amo profundamente o presidente. Ele passou a vida como servidor público e trabalha incansavelmente pelo bem do povo”, diz. “E a esposa dele é uma leitora fantástica.”

À porta dos 60 anos, Jane Smith tem a idade de Bret Easton Ellis e Donna Tartt, mas ninguém a classifica como membro do grupo de vanguardistas literárias. Seus livros estão mais próximos do território de Anne Tyler, e sua reputação como uma das mais talentosas escritoras norte-americanas de ficção e não ficção cresce constantemente. Barack Obama colocou sua coletânea de ensaios estes dias preciosos na lista de seus livros preferidos em 2021.

Tom Lake. Jane Smith. Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves. Intrínseca (368 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon

Filha de um policial e de uma enfermeira “muito bonita”, Jane mudou-se de Los Angeles para Nashville com a mãe e a irmã aos 6 anos, após o divórcio dos pais. Aos 20, participou da famosa Oficina de Escritores de Iowa, enquanto trabalhava como garçonete.

Publicou o primeiro romance, O Santo Padroeiro dos Mentirosos, em 1992, aos 27 anos, mas sua carreira só decolou com o quarto livro, Bel Canto, drama operístico vencedor do Women’s Prize de ficção em 2002. Seu romance A Casa Holandesa (2019), saga familiar na linha de Henry James com conotações de contos de fadas, recebeu ótimas críticas, esteve nas listas dos mais vendidos e virou audiolivro pela voz de Tom Hanks.

Seu foco no amor e no casamento, e em algum tipo de redenção, não se encaixa no clima millenial de ficção angustiante. “Sou uma mulher do tipo ‘copo meio cheio’, que topa tudo, e as pessoas se incomodam por eu ser esperançosa, alegre ou interessada na família – não importa”, diz alegremente. “Não estou escrevendo todos os romances. Não sou a romancista desta época. Você quer terror, terá terror. Quer distopia, pode ter distopia. Quer tédio e depressão, terá isso à vontade.”

Sua resposta aos que reclamam que sua ficção é do estilo “Poliana” é: “Quantos serial killers você conhece?” Ela gosta de escrever sobre as pessoas que a cercam. “Se você escreve sobre mafiosos, assassinos e psicopatas, e as pessoas dizem: ‘Ah, você está contando a história real’, penso: ‘Não, porque você não conhece essas pessoas’.”

Ambientado em um pomar de cerejeiras no norte de Michigan durante a pandemia, Tom Lake, seu mais recente livro, ecoa a situação de reféns de Bel Canto, quando três filhas adultas voltam a morar com os pais na fazenda da família. A mãe delas, Lara, passa o tempo contando a história de seu sonho juvenil de ser atriz de Hollywood e seu primeiro caso de amor malfadado com um carismático ator bad boy.

Missão. A Bookstore é sua livraria independente em Nashville, no Tennessee – Imagem: Redes sociais

A autora queria que o romance mostrasse como “o amor no casamento é mais valioso que o amor insano e quente dos 20 anos”. Embora haja acenos claros a Chekhov e Rei Lear, a maior dívida do romance é para com a clássica representação da vida cotidiana de Thornton Wilder, A Nossa Cidade.

Anna é obcecada por A Nossa Cidade – a grande peça americana, segundo Edward Albee – desde que a leu no colégio. “É sobre como a vida é linda e comum. É o tipo de coisa em que acredito”, diz ela. “A vida é incrivelmente bela e muito simples, e tudo parece lento e, de repente, muito, muito rápido. A peça resume isso.”

Em Tom Lake, ela recria a sensação de que “num mundo e num planeta que está virando um inferno ainda há beleza e alegria”. Com as cerejeiras em flor, Lara sente-se culpada por sua felicidade porque todos os seus queridos voltaram para casa: “Não posso fazer nada pelo mundo e pelas chamas além de deixar máscaras grátis na barraca de frutas, mas o fato de estarmos presos é uma grande alegria”.

As chamas não são apenas as da pandemia. A filha mais velha de Lara, que planeja viver na fazenda, decide que não vai ter filhos por causa da emergência climática. Embora a maternidade seja uma das alegrias do romance, a falta de filhos não influi na trama. “É isso que faço: invento essas coisas”, diz, seriamente. “Penso muito sobre isso. Não sou atriz. Não sou agricultora. Não sou mãe.”

Ela escreve com franqueza sobre a certeza de não desejar filhos no ensaio Não Há Crianças Aqui. “Você faria as mesmas perguntas a Jonathan Franzen? Ele não tem filhos”, retrucou certa vez a um entrevistador de rádio que insistia no assunto.

Embora o confinamento “fizesse todo o sentido” como cenário, Tom Lake não é um romance sobre o lockdown como Oh William!, de sua amiga Elizabeth Strout. “Todo mundo tem um livro da pandemia”, diz, e o dela foi a coletânea de ensaios estes dias preciosos.

Ela diz que o ensaio-título, que viralizou após a publicação na revista Harper’s, “é a coisa mais importante” que já escreveu. O texto conta como a assistente de Tom Hanks, Sooki Raphael, que ela conheceu num evento do livro de Hanks, foi se tratar de um câncer no hospital onde o marido de Ann trabalha, e acabou morando com eles durante o confinamento. Em uma atraente mistura de e-mails e memórias, ele registra como duas “desconhecidas afetuosas” ficaram amigas.

“Sou uma livreira. É isso que eu faço. Sou obcecada pelos livros de outras pessoas”

Jane é a primeira a admitir o hábito da autovalorização, mas, tanto nos textos quanto pessoalmente, ela se salva de parecer complacente ou sentimental, graças a uma mistura de humor frio e autocrítica capaz de desarmar o interlocutor. Sua maior contribuição para a literatura, diz, é como embaixadora na Bookstore.

Ela escreve quando pode, e sempre sem contrato: “Nunca devo trabalho às pessoas”. Os escritores que ela conhece e que mais protegem seu tempo são os menos produtivos. “Eu faço o trabalho. Não procrastino. Criatividade, inspiração, todas essas palavras significam muito quando eu tinha 20 anos”, diz. “Agora eu trabalho. Escrever é mais sobre ter uma ideia que pareça valer o meu tempo e valer o seu tempo.”

Poucas coisas a irritam mais do que escritores que reclamam que escrever é a tarefa mais difícil do mundo. “Sempre tenho vontade de dizer: ‘Arrume um emprego!’” Jane lembra-se de uma entrevista na qual Madonna disse que nunca faz nada que a machuque. “Isso é muito verdadeiro para mim. Não me faço sentir culpada”, afirma. “Vou dormir praticamente sempre na mesma hora. Faço exercícios todas as noites. Arranjo tempo para meus amigos. Não bebo. Não fumo.”

Ela já se preocupou com a máxima de que a felicidade escreve em branco? Tom Lake não é um romance totalmente feliz, rebate. “É sobre a mudança climática. Sobre um relacionamento jovem realmente perturbador. Há muito equilíbrio nele”, pontua. “Mas, novamente, sou apenas uma voz entre tantas vozes lindas, díspares, importantes e vitais.” •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1318 de CartaCapital, em 10 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A crença numa certa alegria’

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Last Update: 04/07/2024