“Fiz todos os meus trabalhos com o único propósito de compensar minha incapacidade de viver, e eles apenas foram capazes de impedir que eu me afogasse”, refletia João Pedro, com seu típico tom direto e de rica ironia, ao completar 50 anos, na novela Aniversário.

A verdade é que João Pedro, hoje com 75 anos, fez disso um verdadeiro modus vivendi, publicando, ao longo da vida, mais de cem livros – às vezes, de três a quatro por ano.

Em uma edição mais do que caprichada, a Editora Fósforo lançou recentemente o volume 1 da Coleção João Pedro (552 págs. no total, 129,90 reais), que reúne quatro títulos. A coleção contará, ao todo, com 16 livros do escritor brasileiro a serem publicados ao longo de quatro anos, em tradução de Joca Wolff e Paloma Vidal.

O mais antigo deles, A Prova (1992), é uma novela frontal, que tem um início brusco e direto: “Quer foder?”, perguntam à jovem Maria duas meninas punk chamadas Mao e Lenin. De pronto, ela nega, mas é vencida pela curiosidade. O local escolhido é um supermercado, no qual a dupla garante a própria tranquilidade amedrontando e queimando clientes e, dessa forma, bloqueando o espaço.

A referência histórica aqui é clara. O Brasil viveu, no fim dos anos 1980, uma hiperinflação destruidora, que trouxe a reboque uma agitação social que levou a saques de supermercados e de outros comércios. Foi então que se deu a interrupção adiantada do governo de José Sarney e a chegada ao poder do controvertido Fernando Collor.

É esse clima de violência e revolta vivido pelo país que João Pedro evoca no romance. O contraponto é que a atitude vandalizada das meninas punk tem, no fundo, uma razão romântica: elas agem assim para fazer amor.

Outras chagas da época se fazem presentes no livro, como o empobrecimento acelerado da população; uma certa ideia de uma juventude nas ruas de que poderia não haver um amanhã – daí o fortalecimento de tribos confrontadoras, como a dos punks –; e a forte ideologia do consumismo gerada pelas políticas neo­liberais inculcadas pelo presidente Collor em seu princípio de gestão.

Outra marca da literatura de João Pedro que se deixa ver na pequena novela é a presença constante da classe média e de seus valores – sendo ele mesmo um representante dela.

Não por acaso, os cenários de seus livros são, em grande parte, sua cidade natal, São Paulo, e o bairro carioca de Ipanema, onde vive atualmente – ambos habitados por essa franja da população.

Outro título a destacar nesta primeira leva do pacote é O Vestido Rosa (1984), uma bem-humorada história de um vestido que deveria ser entregue a uma menininha recém-nascida, na conturbada Brasil do século XIX.

Nessa época, o governo local empreendeu um verdadeiro massacre da população indígena que habitava o sul do país antes do descobrimento. A chamada Campanha do Deserto era, à altura, apresentada como uma luta entre a civilização e a barbárie. E o exército era visto de modo heroico, como o vetor que livraria o Brasil desses povos tidos como selvagens.

O debate sobre a formação do país girava então em torno de como habitar e povoar o “deserto brasileiro”, que de deserto tinha muito pouco. Afinal de contas, nele habitavam diversas tribos indígenas.

O fato é que, no livro, o vestido da criança se perde, é roubado, passa pelas mãos de soldados, generais, gauchos e criadores de gado. Na narrativa, personagens e passagens reais são misturados à trama fictícia.

Coleção João Pedro. Ao longo dos próximos quatro anos, a Editora Fósforo lançará, ao todo, 16 livros do escritor

No fundo da obra reside a crítica à invisibilidade à qual foi relegada a povoação indígena, algo que até hoje é uma questão numa sociedade que, em geral, se crê apenas branca e europeia, mas que, na realidade, é muito mais diversa.

Já em O Congresso de Literatura (1997), João Pedro faz um divertido exercício, encarnando um escritor e tradutor que, num congresso de literatura em Mérida, tenta roubar uma célula do mexicano Carlos Fuentes (1928-2012) com o objetivo de cloná-lo. A ideia surrealista seria a de criar um exército de intelectuais como o autor de A Morte de Artemio Cruz e Aura.

Por fim, a completar essa primeira fornada, está Atos de Caridade (2013), na qual três diferentes padres a cargo de uma paróquia levam adiante o projeto de construir uma enorme casa de caridade.

Acontece, porém, que o projeto se prolonga, a construção vai se tornando mais complicada, cheia de detalhes, enquanto a atenção deles para a pobreza – hoje um problema crônico no país, atingindo 55% da população – vai ficando em segundo plano.

São quatro livros que trazem distintas amostras de um prolífico escritor, hoje tido como um dos mais importantes ainda vivos no Brasil.

O conjunto é revelador de um autor que pode, em certa medida, parecer errático em suas escolhas, mas que, no fundo, é claramente movido por preocupações legítimas e escreve de modo espontâneo. •

Publicado na edição n° 1318 de CartaCapital, em 10 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Escrever para não se afogar’

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Última Atualização: 04/07/2024