Democracia Hackeada: O império dos dados e a colônia Brasil
por Reynaldo Aragon
Enquanto se fala em soberania nas cúpulas do poder, o Brasil entrega, em silêncio, o que tem de mais precioso: sua infraestrutura digital. Este artigo revela como o país paga para ser vigiado, terceiriza sua inteligência e abre mão do controle sobre o próprio destino em nome de uma falsa modernização.
O inimigo já está dentro dos nossos sistemas.
A mais recente revelação sobre o uso ilegal de softwares de espionagem no Brasil não é um caso isolado. Tampouco é um erro técnico ou uma falha pontual de protocolo. É a confirmação de um padrão: o país se transformou em território rastreado, onde governos, empresas e agências estrangeiras disputam o acesso irrestrito aos nossos dados, à nossa infraestrutura digital e às nossas comunicações privadas. Quando a Agência Brasileira de Inteligência, durante o governo Bolsonaro, utilizou o software israelense FirstMile para monitorar jornalistas, adversários políticos e até membros do próprio Estado, o que se viu não foi apenas um escândalo de desvio institucional. Foi uma rendição silenciosa da soberania.
Ao contratar ferramentas tecnológicas cuja estrutura de funcionamento depende de servidores e bancos de dados localizados no exterior, como no caso do FirstMile, cujas informações eram enviadas diretamente para Israel, o Brasil não apenas terceiriza sua inteligência: ele abdica de sua autonomia. A espionagem digital, nesse contexto, não é uma prática secundária, mas a ponta visível de uma engrenagem geopolítica em pleno funcionamento. E essa engrenagem não apenas vigia. Ela define políticas, interfere em eleições, antecipa decisões econômicas e molda o debate público.
Diante disso, a pergunta central não pode mais ser se o país está sendo espionado, mas por quem, com qual finalidade e com quais consequências. A lógica da submissão tecnológica escancara a vulnerabilidade estrutural do Brasil. E não há saída possível que não passe por reconhecer um fato duro, mas necessário: sem soberania informacional e sem controle sobre as infraestruturas críticas da comunicação, nenhuma outra soberania é possível.
Espionagem como arma de dominação no século XXI.
Durante boa parte do século XX, espionagem era sinônimo de escutas telefônicas, infiltrações e documentos secretos. Mas a virada do milênio transformou radicalmente essa lógica. Hoje, o coração da espionagem é digital, invisível e contínuo. Ela não precisa mais de agentes infiltrados, mas sim de algoritmos que percorrem redes, cruzam dados e antecipam comportamentos. Governos e corporações deixaram de operar no terreno físico para dominar o campo informacional. E é ali que se trava a disputa mais estratégica do século XXI.
A coleta de metadados, o rastreamento de localização, o monitoramento de redes sociais, os padrões de busca e os históricos de conversação revelam mais sobre um povo, um governo ou uma liderança do que qualquer operação militar jamais seria capaz. O que antes exigia anos de inteligência e infiltração, hoje é entregue em tempo real por softwares como Pegasus, FirstMile ou Cellebrite — e, muitas vezes, com autorização ou ingenuidade dos próprios Estados nacionais que os contratam.
Não se trata apenas de vigilância. Trata-se de controle. O acesso irrestrito a informações sensíveis permite antecipar decisões econômicas, manipular a opinião pública, sabotar políticas de soberania e interferir diretamente no curso político de uma nação. A espionagem, nessa nova fase, tornou-se uma técnica de governança indireta, operada pelas potências centrais sobre os países periféricos. Um império digital em pleno funcionamento, sustentado por dados em vez de tanques, e por contratos de licenciamento em vez de tratados coloniais.
Neste cenário, o Brasil não é exceção, é exemplo. Um território estratégico, dotado de recursos naturais, população numerosa e peso político na América Latina, que continua renunciando a sua segurança informacional. E essa abdicação tem consequências.
O Brasil no centro do mapa: da NSA ao Pegasus.
O Brasil não é apenas alvo ocasional da espionagem global. É peça central em um tabuleiro silencioso onde se disputa o controle do futuro. Em 2013, os documentos revelados por Edward Snowden deixaram evidente a profundidade da rede de vigilância operada pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, a NSA. As interceptações não se limitavam a suspeitos de terrorismo, como se tentou justificar. Elas atingiam diretamente a então presidenta Dilma Rousseff, a Petrobras e o Ministério de Minas e Energia. A motivação não era segurança, mas sim o acesso privilegiado a informações estratégicas de alto valor geopolítico.
A reação pública foi imediata, mas institucionalmente o episódio foi tratado como um ruído diplomático. A falta de medidas concretas para fortalecer a proteção dos sistemas de informação brasileiros mostrou que o escândalo, na prática, não rompeu o ciclo de submissão tecnológica. O país seguiu vulnerável e com infraestrutura crítica sob risco constante.
Anos depois, sob o governo de Jair Bolsonaro, o interesse em ferramentas avançadas de espionagem digital se intensificou. O Pegasus, software criado pela empresa israelense NSO Group e utilizado em regimes autoritários para monitorar jornalistas e opositores, foi alvo de negociações diretas. Apesar das tratativas não terem se concretizado, o governo buscou alternativas. A mais significativa foi a aquisição do software FirstMile, desenvolvido pela Cognyte, também de origem israelense. O contrato, firmado pela ABIN por cerca de 5,7 milhões de reais, deu origem à investigação da Polícia Federal conhecida como Operação Última Milha.
Segundo o relatório da operação, o sistema foi utilizado mais de trinta mil vezes para rastrear a localização de cidadãos brasileiros, sem autorização judicial e sem qualquer controle externo. As informações captadas eram transmitidas para servidores instalados fora do país, com destaque para centros de dados em Israel. Isso significa que dados estratégicos de autoridades públicas, jornalistas, magistrados e até membros do próprio governo foram exportados sem qualquer salvaguarda soberana.
A gravidade do caso não está apenas no volume de informações captadas, mas no princípio que foi rompido. O Brasil passou a financiar com recursos públicos sua própria fragilidade. Pagou para ser espionado.
Quando o Estado abre as portas: o caso Bolsonaro e a institucionalização da vigilância estrangeira.
A espionagem digital no Brasil não se limita a ações clandestinas de potências estrangeiras. O que torna o caso brasileiro particularmente grave é o envolvimento direto do próprio Estado na legalização, normalização e fomento dessas práticas. Durante o governo de Jair Bolsonaro, a arquitetura institucional da vigilância foi reorganizada com objetivos políticos claros. Sob o pretexto de modernizar a segurança pública e reforçar a inteligência nacional, abriu-se espaço para a contratação sistemática de softwares de espionagem altamente invasivos, sem qualquer tipo de controle democrático.
O exemplo mais evidente é o Projeto Excel, iniciativa do Ministério da Justiça, que buscava distribuir equipamentos de extração de dados a secretarias estaduais em troca do envio de informações ao governo federal. A proposta, envolta em linguagem técnica e burocrática, mascarava uma ambição perigosa: centralizar grandes volumes de dados civis em uma base federal sob controle político. Não se tratava de combater o crime organizado. Tratava-se de vigiar a sociedade.
A tentativa de aquisição do software Harpia é outro exemplo da instrumentalização da espionagem por objetivos autoritários. Desenvolvido por uma empresa nacional, mas com arquitetura similar aos programas israelenses, o sistema seria utilizado para interceptar comunicações e rastrear cidadãos sem necessidade de ordem judicial. A compra, orçada em mais de cinco milhões de dólares, só não foi efetivada por intervenção do Tribunal de Contas da União, que apontou irregularidades no processo de licitação. Mesmo assim, o episódio revelou a disposição do governo em investir pesado na construção de um aparato de vigilância que não respondia à lei, mas à lógica da perseguição.
Esses casos não são exceções. Eles são expressão de um projeto. Um projeto autoritário, antidemocrático e, sobretudo, entreguista. Ao abrir as portas para empresas estrangeiras que operam no setor de inteligência, o governo Bolsonaro não apenas fragilizou a privacidade dos brasileiros, mas também comprometeu os próprios alicerces da soberania nacional.
O governo Lula não pode seguir pelo mesmo caminho. Como alerta o artigo “A nova corrida do ouro são os dados – e o Brasil está prestes a entregá-los” (Brasil 247), permitir que Big Techs controlem a infraestrutura digital do país é repetir a lógica da dependência. Sem soberania informacional, não há soberania possível.
A falsa promessa da segurança e a real ameaça à democracia.
A retórica da segurança é frequentemente usada como escudo para justificar o uso de tecnologias de espionagem. Governos alegam combate ao crime, proteção da ordem e modernização institucional. Mas, na prática, o que se vê é a criação de um aparato opaco, sem controle social, que frequentemente é voltado para vigiar adversários políticos, jornalistas, ativistas e até servidores públicos. A segurança prometida nunca chega. Em seu lugar, instala-se um ambiente de medo, vigilância e autoritarismo.
No Brasil, a expansão da contratação de softwares espiões entre 2018 e 2022 ocorreu com velocidade alarmante. Órgãos sem atribuição investigativa, como secretarias da Fazenda e prefeituras, firmaram contratos milionários para aquisição de ferramentas de extração de dados. Em vez de ampliar a capacidade investigativa do Estado, o que se criou foi uma infraestrutura de exceção, potencialmente voltada ao monitoramento político e social. O caso do FirstMile, usado pela ABIN para rastrear milhares de pessoas sem autorização judicial, expõe o descolamento completo entre o discurso oficial e os reais objetivos dessas operações.
Em um Estado democrático, vigilância não pode ser tratada como rotina. Ferramentas que acessam comunicações privadas, localizações e dados pessoais devem estar submetidas a regras rígidas, fiscalização constante e controle institucional. Fora disso, são instrumentos de exceção. E onde a exceção vira regra, a democracia deixa de existir.
Infraestrutura vendida, soberania enterrada.
A soberania de um país não se sustenta apenas em sua moeda, em seu território ou em suas forças armadas. No século XXI, ela passa, de forma incontornável, pela capacidade de controlar a própria infraestrutura digital. Quando os dados de uma nação são processados, armazenados e geridos por empresas estrangeiras, sob legislações que escapam ao poder soberano do Estado nacional, o país perde sua autonomia estratégica. Deixa de decidir sobre si mesmo.
O Brasil caminha perigosamente nessa direção. A ausência de um projeto sólido de infraestrutura pública de dados e a crescente dependência de serviços operados por Big Techs criam uma vulnerabilidade estrutural. Plataformas de vigilância, redes de comunicação, sistemas de nuvem e até algoritmos de inteligência artificial estão sendo terceirizados para empresas que respondem a interesses externos — muitas delas, historicamente associadas a governos estrangeiros e à lógica de espionagem comercial e política.
Esse processo de entrega silenciosa enfraquece as demais formas de soberania. Sem domínio sobre a comunicação e a informação, não há segurança nacional real. Não há proteção à economia, nem liberdade política efetiva. Uma infraestrutura digital vendida é uma soberania enterrada.
A encruzilhada: ou soberania digital, ou servidão tecnológica.
O Brasil está diante de uma escolha decisiva. Ou constrói as bases de sua soberania digital com infraestrutura própria, controle público, transparência e responsabilidade, ou seguirá como colônia informacional a serviço de interesses alheios. Não há terceira via. A ilusão de que é possível delegar o controle dos dados nacionais sem consequências políticas, econômicas e institucionais já foi desmentida por todos os fatos.
A espionagem institucionalizada, os contratos obscuros com empresas estrangeiras e a submissão tecnológica não são falhas do sistema. São estratégias deliberadas de subordinação. E cada vez que um governo ignora esse quadro em nome da eficiência, da inovação ou do pragmatismo, o que se entrega não é apenas infraestrutura — é o futuro.
Soberania digital não é discurso técnico. É questão de sobrevivência política. É o direito de um povo decidir seu destino sem ser monitorado, manipulado ou sabotado por quem detém os meios. A alternativa é clara: ou o Brasil assume esse desafio histórico, ou continuará preso à engrenagem da vigilância permanente.
Reynaldo Aragon Gonçalves é jornalista, Coordenador Executivo da Rede Conecta de inteligência Artificial e Educação Científica e Midiática, é membro pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI).
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