Foi um final confuso para uma história caótica. Julian Assange foi libertado no fim de junho do presídio de Belmarsh, no Reino Unido, e embarcou num voo para a Ilha de Saipan, no Pacífico, governada pelos EUA. Lá, sob um acordo especial com as autoridades norte-americanas, ele declarou-se culpado em um tribunal por obter e publicar ilegalmente documentos confidenciais, em troca de uma pena de prisão de cinco anos, que ele já havia cumprido em cadeias britânicas. E assim, pela primeira vez em 12 anos, Assange viu-se um homem livre.

Declarar-se culpado de espionagem era um requisito para que Assange ganhasse a liberdade pessoal, mas levanta questões mais amplas sobre a liberdade de imprensa. Assange foi acusado de espionagem não por oferecer informações confidenciais a um governo estrangeiro, mas por publicar um material que o governo dos EUA não queria que viesse a público. As acusações que Assange enfrentou “baseiam-se quase totalmente na conduta que os jornalistas investigativos adotam todos os dias”, observou Jameel Jaffer, especialista em liberdade de expressão da Universidade Columbia, ainda em 2019. É por isso que “a acusação deve ser entendida como um ataque frontal à liberdade de imprensa”.

A saga de Assange dura tanto tempo que é fácil esquecer como começou. Em 2006, ele e um grupo de colegas ativistas criaram o WikiLeaks, um editor global de documentos politicamente sensíveis vazados. As primeiras revelações incluíram denúncias de corrupção no Quênia e no mundo árabe e da repressão chinesa à agitação civil no Tibete.

Depois, em abril de 2010, o WikiLeaks divulgou imagens de vídeo, intituladas “Assassinato Colateral”, de um helicóptero Apache dos EUA abatendo ao menos 11 civis, incluindo os jornalistas Namir Noor-Eldeen e Saeed Chmagh, da Reuters, numa rua de Bagdá três anos antes. Washington havia negado vários pedidos da agência para ver as imagens.

Filmado a bordo do helicóptero, o vídeo mostra um grupo de homens, incluindo os dois jornalistas, atravessando uma rua. Supondo que se tratava de insurgentes, os militares abrem fogo. Oito são mortos. Chmagh fica ferido. Minutos depois, uma van passa. Ao ver Chmagh ferido, o motorista para com a intenção de levá-lo ao hospital. O helicóptero abre fogo novamente, matando Chmagh e três socorristas. Duas crianças ficam gravemente feridas. “Bem, a culpa é deles por trazerem crianças para uma batalha”, diz um integrante da tripulação do helicóptero, com indiferença.

Uma patrulha terrestre americana então chega. “Foi nesse momento que percebi que o que estávamos fazendo era errado”, disse mais tarde aos repórteres um dos soldados, Ethan McCord. Juntamente com Josh Stieber, outro soldado da mesma unidade, McCord escreveu uma “carta aberta de reconciliação e responsabilidade ao povo iraquiano”, reconhecendo que os atos retratados no vídeo eram “ocorrências cotidianas”, faziam parte da “natureza das guerras lideradas pelos EUA nesta região”.

O vídeo causou indignação em todo o mundo. Da mesma forma, transformou Assange num homem marcado. “Assassinato Colateral” foi o mais chocante de uma série de documentos confidenciais e relatórios de campo que o WikiLeaks publicou como “Registros da Guerra do Iraque” e “Registros da Guerra do Afeganistão”. Estes forneceram provas da tortura de prisioneiros, da pressão exercida sobre Estados estrangeiros para não investigarem casos de tortura pelas forças norte-americanas, de mortes em massa de civis iraquianos que não tinham sido oficialmente registradas e de acordos secretos de armas para abastecer conflitos publicamente negados. No entanto, para muitos, o verdadeiro crime não foi a tortura e os assassinatos, e sim o ato de os revelar. Figuras proeminentes, incluindo o então candidato presidencial republicano Mike Huckabee, chegaram a pedir o assassinato de Assange. Mike Pompeo, como diretor da CIA, teria examinado, em 2017, as possibilidades de fazer exatamente isso.

Ele foi obrigado a admitir culpa por espionagem, mas fez apenas o que se espera de um jornalista

Grande parte do material do WikiLeaks foi fornecida por Chelsea Manning, uma analista de inteligência dos EUA que em 2013 foi condenada por espionagem e recebeu sentença de 35 anos, posteriormente comutada por Barack Obama. Implacável em sua perseguição aos denunciantes, o governo Obama absteve-se de tomar medidas contra Assange porque, como disse ao Washington Post um ex-porta-voz do Departamento de Justiça, Matthew Miller: “Não há como processá-lo por publicar informações sem que a mesma teoria seja aplicada a jornalistas”.

O governo seguinte, de Donald Trump, não teve tais escrúpulos. Em 2019, promotores dos EUA acusaram Assange de 17 casos de espionagem, após acusá-lo secretamente, no ano anterior, de conspiração para hackear. Assange começou uma luta de cinco anos contra a extradição, que finalmente terminou com o acordo judicial.

A confusão da história também deriva de atos de Assange. Críticos, até mesmo de dentro do WikiLeaks ou de seus parceiros de mídia, o acusam de não levar suficientemente a sério a necessidade de proteger civis expostos nos documentos vazados, incluindo tradutores afegãos que tiveram os nomes revelados. Mas, se a acusação de espionagem jamais deveria ter sido apresentada, há outra acusação pela qual ele deveria ter enfrentado o devido processo legal, mas conseguiu escapar.

Quando Assange buscou refúgio, pela primeira vez, na embaixada do Equador em Londres, em 2012, foi para escapar da extradição não para os EUA, mas para a Suécia, onde respondia a acusações de estupro e agressão sexual, apresentadas por duas mulheres. Assange e seus apoiadores alegaram que era “armadilha”, uma campanha de truques sujos organizada por Washington para facilitar a extradição para os EUA.

Qualquer que seja a verdade, as denúncias só poderiam ser testadas em um tribunal. Uma denúncia de violação não merece menos consideração porque o suposto perpetrador desempenhou um papel importante em trazer verdades à luz. A recusa de Assange de enfrentar processos judiciais não condiz com suas afirmações sobre a necessidade de “agir eticamente”.

No entanto, apesar de toda a confusão dessa história, seu significado central permanece inalterado: a perseguição a Assange por parte dos EUA foi um ataque à nossa capacidade de expor o que os poderosos não desejam ver exposto e de responsabilizá-los por seus atos. Numa época em que, da Rússia à Faixa de Gaza, da Índia à Etiópia, ser jornalista é uma ocupação perigosa, defender a liberdade de imprensa raramente foi uma tarefa tão vital. •


* Kenan Malik é colunista do Observer.

Publicado na edição n° 1318 de CartaCapital, em 10 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Verdade escondida’.

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Última Atualização: 04/07/2024