A nova realidade de segurança da Europa
por Wagner Sousa
O Tratado que criou a Comunidade Econômica Europeia, organização precursora da atual União Europeia, foi assinado em 25 de março de 1957, na cidade de Roma, e a escolha da capital italiana para esta solenidade teve um aspecto simbólico especial: a clara alusão ao Império Romano. Foi no seu período histórico que o continente esteve unido sob o mesmo comando político. A “arquitetura política” da criação da CEE surge como solução para o imperativo de pacificação de um continente assolado por mais de um milênio de guerras e que pouco mais de uma década antes tinha visto o fim do mais devastador dos conflitos, a Segunda Guerra Mundial. E nesta concepção, o historiador Alan Milward, em The European Rescue of the Nation State explica de que não se tratou da criação de uma organização que gradualmente suprimisse o Estado, mas sim o acordo que permitiu a volta do funcionamento do sistema de Estados Nacionais na Europa Ocidental, ou seja, um novo arranjo político que suprimiu algumas funções destes países para que esta invenção europeia, o Estado Nacional, pudesse voltar a operar na região do mundo que originalmente a criou.
Contudo, um aspecto a ser destacado é essencial: a Europa Ocidental do pós-guerra estabeleceu pactos para a pacificação entre seus Estados Nacionais lastreados na “relação transatlântica” com os Estados Unidos e constituição da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em 1949. Na prática, isto significou transformar a Europa Ocidental num protetorado norte-americano, que se alargou para a Europa Oriental após o fim da Guerra Fria. O avanço da integração econômica europeia teve a garantia da segurança proporcionada pela OTAN, liderada e em maior medida custeada pelos EUA.
A partir dos anos 1980 as iniciativas que visavam o desenvolvimento institucional do projeto europeu se articularam com ações de liberalização econômica, seguindo a tendência indicada pelo hegemon e sua matriz anglo-saxônica, com quem mantém uma “relação especial”, a Grã-Bretanha, nos governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Estas políticas resultaram, nos dois lados do Atlântico, em expressivo aumento da concentração de renda, descontentamento social e ascensão de legendas de extrema-direita, que, no caso europeu, crescem em grande medida expressando a rejeição de parte das populações à União Europeia.
E esta mesma globalização que fez aumentar a polarização social no chamado “Norte Global” foi oportunidade para o crescimento econômico de muitos países asiáticos com suas estratégias voltadas às exportações. Têm-se então a mudança de seu peso relativo no mundo, processo que segue avançando. União Europeia em especial, mas também os Estados Unidos se enxergam declinantes na hierarquia global de poder, em relação especialmente à China, com destaque para a percepção estadunidense de enfrentar uma inédita contestação à sua hegemonia por parte de Pequim, que se propõe a os desafiar nos campos econômico, diplomático, militar e tecnológico.
Nesta quadra histórica irrompe a Guerra da Ucrânia, com a invasão russa provocada pelo movimento expansivo da OTAN, e que teve como um dos seus objetivos principais, por parte de norte-americanos e britânicos, como já defendido pelo geógrafo Halford Mackinder em “O Pivô Geográfico da História”, provocar o distanciamento entre a Alemanha e a Rússia, relação que se estreitou neste século XXI e que os EUA então viam como ameaça à sua supremacia na Europa e na Ásia. A “agressão russa” catalisou um movimento de reafirmação da OTAN, aliança que o presidente francês Emmanuel Macron descreveu em algum momento como “em morte cerebral”. Estados Unidos e União Europeia passaram a apoiar fortemente a resistência ucraniana, no que muitos analistas classificam como “proxy war” (guerra por procuração) na qual a Ucrânia cumpre pelo Ocidente o papel de enfrentar a Rússia.
Os formuladores de política externa do governo democrata de Joe Biden definiram sua estratégia internacional a partir do reforço das alianças e consequente articulação de suas políticas com vistas à disputa hegemônica com a China. Esta “articulação” muitas vezes é conseguida com pressão, como no caso da solicitação dos EUA para que holandeses e japoneses não vendessem à empresas chinesas determinadas máquinas fundamentais para se fabricar chips avançados. O bloco liderado pelos EUA e seguido por europeus, japoneses, sul-coreanos, australianos e neozelandeses buscou, portanto, se contrapor ao “eixo autoritário” composto por Rússia e China. Desde o fim da Guerra Fria, a tese de que é interesse dos EUA enfraquecer a Rússia foi a vencedora no establishment e posta em prática, desde então, muitas vezes na forma de “guerra híbrida”, por sucessivos governos.
Neste segundo mandato de Donald Trump, ainda em seu início, o governo dos Estados Unidos vem exercendo uma política externa que em muito difere não apenas dos democratas, mas da linha seguida também pelo partido republicano desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A ideia de “América First” rompe com o internacionalismo construído e liderado pelos EUA dos últimos 80 anos. A “ordem global baseada em regras” vai sendo substituída por um isolacionismo que busca renegociar a ordenação do mundo com as outras duas grandes potências, a Rússia e a China, tendo como premissa o estabelecimento de “zonas de influência” destes países. Alianças como a com os europeus são vistas como um fardo pelo novo governo. Livre-comércio passa a ser visto como prejudicial, reindustrialização é um imperativo e até mesmo o respeito à integridade territorial das nações, uma peça fundamental da ordem internacional, não é mais garantido, com as ameaças do mandatário norte-americano ao Panamá, à Groenlândia e ao Canadá.
Para os europeus, a guinada representada pela invasão russa da Ucrânia, representou uma ruptura com décadas de “complacência” regional com o investimento em segurança. A guerra iniciada em 24 de fevereiro de 2022 gerou um impulso armamentista na Europa, com expressivo aumento nos dispêndios com os orçamentos militares. A Polônia vem liderando, em porcentagem do PIB, o gasto bélico no continente e a Alemanha então decidiu por um gasto extraordinário de mais de 100 bilhões de euros para rearmamento. No caso alemão, significou o fim de mais de duas décadas de exercício, conforme definição de Hans Kundnami em The Paradoxx of German Power, de uma semi-hegemonia geoeconômica na União Europeia, com foco nas estratégias exportadoras regional e global. A ênfase na economia e especificamente no comércio internacional pôde acontecer sem a necessidade de maiores gastos militares, pois a segurança sempre foi assegurada, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, pelo hard power da infraestrutura militar da OTAN e “cobertura nuclear” dos EUA. A partir do “choque” da eclosão do conflito, iniciou-se, portanto, o estabelecimento de uma “economia de guerra” com conversão de indústrias para a fabricação de equipamento militar e a criação da “Zona Schengen” estratégica, numa alusão ao livre trânsito de cidadãos pela UE, para a liberdade de movimentação de tropas pelo continente, sem autorização prévia dos Estados.
A disposição de governo Trump, até então, em negociar com a Rússia o fim da guerra, mostrando-se mais inclinado a apoiar as posições do presidente russo Vladimir Putin, alijando os europeus das negociações, e as declarações do presidente norte-americano demonstrando pouco compromisso com a OTAN, além do já mencionado bullying com a Dinamarca na questão da soberania sobre a Groelândia tornaram evidente para os dirigentes da região que a posição de protetorado dos EUA não é mais garantida.
A Europa se vê premida pela necessidade de se rearmar. A Alemanha, que agora é liderada pelo conservador Friedrich Merz, decidiu tirar os gastos de defesa dos limites orçamentários e aprovou também um pacote de 500 bilhões de euros para investimentos na debilitada infraestrutura do país. A União Europeia, através do plano Rearm Europe prevê mobilizar 800 bilhões de euros para gastos com defesa no bloco. As dúvidas em relação à proteção por parte dos EUA estão fazendo avançar as conversas acerca de defesa conjunta independente dos países da região. A defesa nuclear também vem sendo discutida, com a possibilidade da França e da Grã-Bretanha oferecerem essa “cobertura”. Polônia e Alemanha tem falado em ter as próprias armas nucleares.
Na prática, essa “defesa conjunta” independente dos EUA por parte da Europa, embora desejada, não é algo fácil de se conseguir, pelos diferentes interesses de cada país. Os Estados Unidos sempre lideraram a OTAN como um poder externo que submeteu os países da região. Não há neste momento na Europa país com essa capacidade para liderar. França e Alemanha já vem disputando a primazia nesta questão. Há também o problema de que os europeus ainda vão depender dos EUA, estima-se, pelo menos por mais uma década, até que tenham construído suas próprias capacidades, o que implica, além do investimento nas forças armadas, a constituição de um complexo industrial de defesa que atenda amplamente as necessidades, pois atualmente também são muito dependentes dos EUA neste tipo de suprimento.
Politicamente, muitas das forças de extrema-direita europeias são mais próximas da Rússia e menos propensas a vê-la como um inimigo. E a extrema-direita vem crescendo na Europa, já governa a Itália e pode eventualmente governar França e Alemanha no futuro, o que torna mais provável que se mude este cálculo estratégico.
A aposta do novo Chanceler alemão Friedrich Merz, contudo, é que a recuperação econômica propiciada pelo “keynesianismo militar” e a recuperação da infraestrutura do país enfraquecerão politicamente a extrema-direita. Que a necessidade de se defender da Rússia (real ou em boa medida imaginada, para justificar esta direção) unirá a Europa. E que a Alemanha, como o país mais rico e de indústria mais importante da Europa, ainda que sem armas nucleares (o que pode mudar) pode liderar o continente nesta transformação de união econômica para também união estratégica.
Wagner Sousa – Doutor em Economia Política Internacional pela UFRJ. Pós-Doutorado em Relações Internacionais pela Unesp. Atualmente é pós-doutorando em Economia Política Internacional na UFRJ com pesquisa sobre a política externa alemã e suas relações com grandes potências (EUA, Rússia e China).
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