Foi muito rápido. No intervalo de apenas uma década, os hábitos de consumo de telas e o acesso a filmes, séries e documentários foram inteiramente modificados. O YouTube surgiu em 2005 e popularizou o conceito de compartilhamento de vídeos. Já a Netflix, criada em 1997 como empresa de aluguel de DVDs pelo correio, revolucionou o mercado de streaming em 2010. Mais cinco anos e no Brasil nascia a Globoplay, hoje a maior plataforma audiovisual do País. Em pouco tempo, o streaming “dominou” o mundo.
Por aqui, o impacto destas mudanças foi mesmo profundo: ao menos 75% dos brasileiros acessam diariamente algum serviço de vídeo por demanda (VOD, sigla em inglês para video on demand). Somos o segundo maior consumidor de streaming do planeta. Mas, como acontece com qualquer nova tecnologia que cresce muito rapidamente, este mercado emergente precisa agora de regulamentação. Esta é, no momento, a principal discussão da indústria audiovisual brasileira — reflexo de uma série de regras para o setor que vêm sendo implementadas em cada vez mais países.
Existem hoje dois projetos de lei que tratam do tema no Congresso Brasileiro. Sou relatora de um deles, o PL 2.331/2022, de autoria do senador Eduardo Gomes, tarefa que tem exigido muita conversa, escuta e busca de consenso entre uma gama diversa e nem sempre convergente de interesses. Recentemente, avançamos para um texto que, se aprovado, pode criar condições necessárias — e urgentes — para acelerar o desenvolvimento do nosso audiovisual. Principalmente, assegurar que a criação e a produção no Brasil não fiquem conformadas ao papel de meras prestadoras de serviços para as grandes plataformas que hoje controlam este mercado. É preciso valorizar, fortalecer, difundir a produção independente brasileira em todas as suas dimensões, incluindo a animação, tão importante para a infância, que necessita de referências e identidade com os seus iguais.
Não foi por acaso que, durante a bem-sucedida temporada de premiações internacionais de Ainda Estou Aqui, a atriz Fernanda Torres, protagonista do filme, e o diretor Walter Salles insistiram nesta tecla. Em entrevistas, afirmaram a importância da regulação do streaming para que mais filmes brasileiros se destaquem no mundo. A continuidade do desenvolvimento e da projeção mundial do audiovisual brasileiro, além da proteção e estímulo ao conteúdo nacional, são estratégicas. Mas o que temos é “uma terra de ninguém”, como disse Salles sobre a atual ausência de regras para as big techs no País.
Na prática, estas plataformas não têm nenhuma obrigação tarifária no Brasil, ao contrário do que já ocorre em outras nações, como França, Espanha, Coreia do Sul, Índia e Canadá, onde a regulamentação tem ajudado a valorizar e expandir as produções independentes. Nestes países, a regulação do streaming vem estimulando o setor audiovisual de múltiplas formas, com o estímulo a talentos e à indústria nacional e o aumento do investimento em novas produções que, por sua vez, valorizam a identidade cultural de cada localidade. Isso resulta no fortalecimento de todo o ecossistema audiovisual, com a geração de mais empregos em toda a cadeia (direta e indireta) e também em uma maior diversidade de vozes e visões de mundo.
O Brasil já desempenha este papel com brilhantismo nas mais diversas áreas, da animação aos documentários, séries, novelas, webvídeos, curtas, medias e longa-metragens… O sucesso global de filmes como Ainda Estou Aqui , Central do Brasil (também de Walter Salles, finalista do Oscar em 1999, vencedor do Urso de Ouro e premiado no Globo de Ouro), O Último Azul (de Gabriel Mascaro, que venceu o último Urso de Prata em Berlim), Bacurau (de Kleber Mendonça Filho, Prêmio do Júri em Cannes em 2019) ou O Agente Secreto (também de Kleber, que disputará a Palma de Ouro em Cannes neste ano) são apenas uma amostra muito bem-sucedida do nosso poder de fogo. O mundo se interessa pelo Brasil e a arte é uma janela que abrimos para a nossa realidade cultural. Também comprova a grande força econômica e social do audiovisual: uma indústria aquecida produz emprego e renda, estimula o turismo e divulga nossa identidade para o mundo. Regular o streaming potencializará todo este ecossistema.
O que há de ponto pacífico entre todos os setores empenhados na regulação no Brasil é o entendimento de que este movimento cria oportunidades e traz mais equidade ao mercado. Emissoras de TV e salas de cinema pagam normalmente a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), um tributo cuja arrecadação se destina ao Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que fomenta o setor. Já as plataformas digitais seguem isentas — calcula-se uma perda anual de 3,7 bilhões de reais para o FSA.
Os desafios passam pelo financiamento, pela diminuição da desigualdade regional, pelo fortalecimento dos nossos polos criativos e da nossa indústria, pela qualificação da formação profissional, com a garantia de direitos autorais e patrimoniais. Com estes parâmetros, a aprovação da regulação do streaming é um importante passo para solucionar essas distorções e deficiências. Mais do que tudo, representa uma oportunidade de afirmação da cultura brasileira no mundo, uma garantia a mais da nossa soberania. Por isso, nosso objetivo tem que ser a aprovação da regulação no Congresso ainda neste ano. Os criadores brasileiros precisam ter seus direitos assegurados e o nosso audiovisual precisa ser mais (re)conhecido. O Brasil quer se ver cada vez mais nas telas.
Regulação já!!!