Austrália. A esquerda ganhou. Um canguru fumou e pirou

por Armando Coelho Neto

Estou em Sidney, na Austrália. Ainda não vi nem comi canguru, e os rostos asiáticos, latinos, afros e outras matizes me transportam a uma metrópole qualquer. Dizem que australianos são apenas 20%, e os demais são X-Tudo – como aqueles lanches de porta de estádio no Brasil. Tempo curto, encaixo-me no que teria dito Clarice Lispector: “Os  relatos dos curtos viajantes nunca me deram uma ideia exata dos lugares onde eles estiveram”. Eis o filtro a ser aplicado pelo leitor.

 Migração, trabalho, hipocrisia e um pouco de sonho são temas de raspão. É o que impõe o espaço e a frágil visão de breve viajante. Migração, por estar entre os mísseis fatais na artilharia da extrema-direita no mundo, com o qual quer devolver o planeta à barbárie. Na Austrália não foi diferente nas eleições encerradas sábado. Anthony Albanese, atual primeiro-ministro (esquerda liberal), foi obrigado a endurecer as regras.  Ouve até uma candidata extremista que não perdeu tempo, e onde pode espalhou – “Trumpest – Make Australia Great“ – assim mesmo, com o superlativo “est“ e sem again.

Trump balançou o coreto australiano, e Albanese ficou mal na fita. Mas, da estupidez com o palhaço Zelensky ao tarifaço, a coisa foi mudando. Peter Dutton (extrema-direita) estava bem nas pesquisas… e aí larari larara. O estrangeiro sequer notou que era dia de eleição, e eleitores nas praias votaram com biquínis e shorts. Não houve ataques às instituições, tentativas de golpe, sem “bíblias e quebra-quebra pacíficos“, tudo em clima de quem vê o dia amanhecer primeiro, ainda com cheirinho de lua de um belo céu que tem feito por aqui.

Sim, Albanese endureceu o jogo com imigrantes. Candidatos a trabalhadores e estudantes sentiram o golpe. Um toque de hipocrisia eleitoral. O trabalho clandestino na Austrália é como jogo de bicho no Brasil. Embora ilegal, todo mundo faz vistas grossas e faz uma fezinha. Pode-se até dizer, sem a virulência estadunidense. Vige entre os imigrantes um certo sentimento que vai da conveniência à solidariedade. E nesse ponto, a visão mais humanizada do primeiro-ministro reeleito teve e tem peso. Para opositores, conluio com construtoras.

Conluio? Como assim? Coisas da extrema-direita bolsoaustraliana. Explicando: casa é o maior sonho de consumo do australiano. Faz parte da cultura, coisa até de canguru que já nasce com uma de reserva para o filhote. Casa significa mais construção. Construir exige mão de obra, e a mais barata é a do imigrante. Mão de obra migrante, muitas vezes, é paga em dinheiro vivo por atravessadores. Bom para quem paga e para quem recebe. Nem suíço gosta de pagar imposto, não? Prato cheio para falsos moralistas da extrema-direita.   

Eis, pois, o capitalismo diante de seus vícios e contradições. Marcia Moussallem, assistente social de vasto currículo, abomina a ideia de humanização do capitalismo. Ela certamente se chocaria com certos depoimentos: sim, trabalhamos muito, mas se chove, fiscais e até a polícia mandam parar o trabalho. Se o calor é forte, hidratar, parar. Chega três da tarde, já passam e, com a mão no pescoço simulando corte, param tudo. Sai do sol, sai da chuva! São rígidos com equipamentos de segurança… Pagam bem e na data, às vezes por dia (testemunhos de obreiros).

Esse registro frio e singular, mero recorte de realidade produzido por breve viajante, é de todo despretensioso. É impossível sustentar a visão de que o capitalismo, como paradoxal motor de progresso, possa ser lido como algo inerente à ganância nata. Pior, estágio máximo do processo civilizatório. Também não cabe discutir sonhos de migrante, expulso de sua terra pelo próprio capital, e que enxerga o mundo como simples painel de oportunidades. Nem mesmo perguntar que vida além da vida que leva, povoaria seus sonhos. Como se exploração estivesse nos olhos de quem vê e não no sentir do observador.

De passagem na Universidade de Tecnologia da Informação, em Sidney, era dia de formatura. Em meio ao agito, painéis prontos para fotos, aptos para captar o sucesso do migrante. A rigor, rostos tristes e saudosos, solitários, risos falsos, semblantes sombrios representando sucesso. Capitalismo ou escravidão humanizada? Do peão ao doutor, o sonho dourado de cada um, tudo cercado de mistérios e vazios. Iguaizinhos aos de tantos em qualquer parte, mas não tão distantes de ombros, colos e aconchegos, com os mesmos vícios de raiz. Mamãe, papai, venci! A foto, o sorriso e ao fundo a paisagem que esconde a parede fria e opaca, onde se pregam avisos acadêmicos ou placas de precisa-se.

Ao longe, um canguru imaginário, o Big Brother da vez, deu um trago num baseado, delirou, sorriu e pirou.

Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 06/05/2025