Quem circula pelo transporte público e pelas ruas da cidade de São Paulo já deve ter se deparado com um fenômeno bastante banal no cotidiano, sobretudo nas periferias da capital.
As pessoas andam por aí resmungando e atacando umas às outras com frases repetidas que têm por objetivo gerar um estado de terror psicológico permanente, e que levam a uma opressão constante.
Se você ainda não se deu conta desse fenômeno, pode passar a observar quantas vezes ao longo do dia escuta as frases “É isso mesmo!” ou, então, “Pode começar!”, “Mereceu!”, “É assim!”, “Ganhamos!” e “Agora, sim!”.
Nós mesmos, caso não tenhamos a intenção de fazer o esforço para nos comunicarmos de forma consciente, podemos nos ver reproduzindo tais sentenças de maneira acrítica.
Essas palavras são proferidas carregadas do autoritarismo que caracteriza nossa sociedade. São ditas como um decreto contra o qual não há chance de réplica e argumentação. Como um “cale a boca e se conforme”.
Para quem não acredita que a finalidade seja nos adaptarmos, isto é, nos conformarmos, a uma sociedade que deforma e adoece os indivíduos, cabe a reflexão crítica sobre esse processo em que a linguagem é utilizada para oprimir e silenciar.
Conforme Marx nos ensinou, as ideias dominantes em todos os tempos são as ideias da classe dominante. Portanto, não é uma surpresa o fato de que as sentenças que são reproduzidas pelos membros da classe trabalhadora transmitam as ideologias da burguesia, como a meritocracia.
Trata-se de uma estratégia de dominação muito antiga (“Dividir para conquistar”) que joga os explorados uns contra os outros em função de diferenças identitárias, evitando, assim, que se fortaleçam, se organizem, identifiquem e derrotem os verdadeiros inimigos do povo.
Um conceito marxista muito pertinente ao fenômeno aqui analisado é o de “superestrutura”. É nítido que as frases que as pessoas repetem de forma hostil são oriundas da indústria cultural de comunicação de massa, da publicidade e da propaganda, da mídia corporativa e dos meios de entretenimento da população em geral.
Pode ser que se trate de gatilhos psicoemocionais identificados em estudos neurolinguísticos com a finalidade de levar as pessoas a consumirem mais. Afinal, é muito comum, em discursos de propaganda de produtos, após anunciar-se seus preços supostamente promocionais, que se arremate a peça publicitária com um “É isso mesmo!”.
Subjetivamente, no que diz respeito aos processos de opressão cruzada, são mobilizados, principalmente, dois mecanismos psicológicos de defesa do ego nessa dinâmica: a projeção e o deslocamento.
A projeção caracteriza-se pela externalização de afetos que podem causar angústia ao ego do indivíduo, razão porque este aponta para fora e acusa o outro de ser o portador do afeto hostil.
Um exemplo bastante claro é o racismo tal qual acontece na sociedade brasileira, onde a grande maioria admite que há racismo, mas pouquíssimos se admitem racistas. Isto é, projeta-se tal comportamento considerado inaceitável e o racista é sempre o outro.
Já o deslocamento pode ser resumido em frases da sabedoria popular como “a corda arrebenta sempre do lado mais fraco” e “quem pode mais, chora menos”. É um mecanismo que reflete uma hierarquização das opressões, pois, apesar de todos serem trabalhadores explorados pelo capitalismo, alguns gozam de privilégios dos quais outros estão privados.
Enfim, pode-se exemplificar tal mecanismo com o homem branco hétero cisgênero rico que oprime seu empregado, que por sua vez, ao sair da firma, passa no bar, bebe, e, ao chegar em casa, humilha sua mulher. Esta, por sua vez, desconta a raiva na empregada negra que, diante da primeira oportunidade, oprime o filho do casal, que chuta o cachorro.
Portanto, aquele que é oprimido projeta sua hostilidade contra alguém que não compartilha de seus traços narcísico-identitários e desloca a raiva que sente em decorrência da opressão em um indivíduo que está em uma situação ainda mais vulnerável.
É importante observar que os mecanismos de defesa são considerados parte do funcionamento “normal” do psiquismo dos indivíduos. Contudo, em muitos casos – como neste também -, o normal é patológico, visto que impossibilita perspectivas mais maduras para lidar com os conflitos.
Evidentemente, tais processos, fenômenos e dinâmicas são o sustentáculo da dominação de classe que decorre da superestrutura condicionadora das subjetividades, incutindo nas mentes dos trabalhadores ideologias falsas que são contrárias aos seus interesses.
Compreender isto é essencial para a prática revolucionária na medida em que, como prega o método do materialismo histórico e dialético, devemos partir de uma caracterização da realidade tal qual ela é e, então, traçar uma estratégia e táticas que visem a propaganda e a disputa ideológica fundamentais para que a necessária Revolução floresça.