Escuta-te, monstro

por Eliseu Raphael Venturi

E se, quando segunda-feira chegasse, ao apagar das luzes e fogos, pensássemos esse monstro que somos? Vivemos em um mundo que não escuta — interpreta, enquadra, disciplina, enterra ou crema.

Os regimes de normatividade moral, jurídica, ética, educacional, linguística, ad infinitum, operam como sistemas de legibilidade compulsória. Aquilo e aquele que não se conforma, que excede ou que goza fora dos limites do aceitável, do adequado, do servível, do útil, do compreensível, do seguro, é imediatamente classificado como erro, sintoma, ameaça ou ruído, doença ou monstruosidade. Em alguns momentos pode, de repente, virar poesia.

Mas e se o que chamamos de desvio for justamente aquilo que nos resta de vital?

A teoria queer nos ensinou há muito a desconfiar da estabilidade das formas, dos sujeitos, dos gêneros e das normas. Butler mostrou que o que chamamos de identidade é uma repetição performada — e que, portanto, toda identidade é instável, aberta ao fracasso e à reescrita. Vale lembrar: todas!

Nesse sentido, o que a norma chama de monstro, a crítica queer reconhece como potência: aquilo que expõe os limites do que pode ser nomeado. E, sim, nossos vocabulários se desgastam, arranham.

“Potência”, por exemplo, foi sendo engolida por discursos motivacionais, slogans corporativos e narrativas de empoderamento… inócuo. O que antes nomeava o irrompimento do indizível hoje serve para vender cursos, justificar o cansaço, alisar a rebeldia.

Quando palavras se tornam fórmula, perdem sua força de rasura, de escultura. Por isso, é preciso buscar novas palavras, expressões, nomes, dejetos, maldições — menos interessadas em celebrar o possível e mais comprometidas com o incômodo do que não pode [não quer, não deve, e simplesmente: não vai] ser absorvido.

Não se trata de nomear o que vem — trata-se de sustentar o que não se diz. Talvez não devamos mais procurar palavras que expressem “potência”, mas aquelas que protejam o gesto do apagamento, o erro da correção, o corpo da captura simbólica. Ou flertar com algum símbolo que se possa requentar.

Divine, nesse sentido, não foi potente — ela foi irredutível. Não convoca superação, mas presença. Sua existência não precisa significar: ela basta, ela queima, ela expõe a falência do nosso dicionário. E, por isso, ela fez o que fez e os personagens dos seus filmes tomaram os rumos que tomaram.

Ícone transgressor do cinema trash, não se oferece à leitura fácil. Seu corpo “exagerado”, seu grito “desafinado”, sua beleza “grotesca” — tudo nela desafia a gramática da decência, do bom gosto, da identidade estável, e também do corpo e performance impecável das divas.

Divine não quer se adaptar: quer cuspir na norma, fazer da carne um manifesto. Ela não pede inclusão, ela afirma uma presença que rasga a moldura do mundo. Quem encara esse real?

Divine não é pessoa ou personagem: é acontecimento – e, sem atalhos, é acontecimento no seu tempo, nas suas condições, contradições e contextos; não há como se emular esse acontecimento. Leia-se o presente do símbolo, portanto, apenas no real do passado.

A presença de Divine performa o que o mundo tenta apagar. Seu corpo gordo, irreverente, dissonante e sexualizado desarticula o que a norma tenta esconder: que o desejo é impuro, que o gozo é incômodo, que o belo pode ser grotesco. Divine é tudo aquilo que a máquina do reconhecimento tenta recusar, mas que retorna como presença inassimilável.

Como diz Paul B. Preciado, não queremos mais ser interpretados como pacientes — queremos hackear os sistemas de reconhecimento que nos produzem.

Divine, nesse sentido, não entra em cena para ser compreendida, mas para desmontar o palco. Sua performance é linguagem sem gramática, presença sem legenda, política sem representação. Divine performa o glitch, o erro que recusa ser corrigido. Ela é a falha que se recusa a desaparecer e encena magistralmente os destinos desse acontecer.

Os sistemas normativos fingem escutar, mas escutam apenas o que conseguem absorver. Tudo o que escapa vira “caso”, “exceção”, “patologia” — ou é simplesmente apagado, esquecido, empacotado, incinerado. A suposta escuta do mundo é, na verdade, um filtro: só é reconhecido o que pode ser convertido em identidade funcional, em narrativa coerente, em mercadoria consumível – inclusive… Divine.

O resto — aquilo que fere, que perturba, que não fecha — é descartado ou estetizado como “diferença inofensiva”. E quando você, meu caro, é o monstro da história, o monstro do real?

A crítica queer insiste: o que a norma rejeita é aquilo que ameaça seu sistema de significação. Divine não ameaça porque é incoerente. Ela ameaça porque encarna, com precisão, aquilo que não pode ser digerido pelo discurso dominante. Sua figura não quer apenas existir — quer implodir o campo onde a existência foi regulada. Sua presença diz: não há centro, não há essência, há gozo, carne, excesso e, veja bem, a preços bem custosos.

Nesse teatro do mundo, o monstro não é bem-vindo, mas inevitavelmente é ele quem revela o funcionamento da cena, porque  interrompe, desafina, denuncia o custo da ordem. Sua presença desorganiza, sua estética perturba, sua fala não cabe nos enunciados legitimados, e é justamente por isso que o monstro é necessário, pois ele encarna aquilo que a norma não consegue eliminar, apenas quer e precisa desesperadamente mascarar.

Cá entre nós, o monstro não é raro.

Escutar o monstro é, então, mais do que dar-lhe voz, é reconhecer que sua voz já estava lá — apenas silenciada por filtros, muros, maquiagem morais, epistemológicos e toneladas de outras formas.

O monstro não quer lugar à mesa, quer quebrar a mesa e dançar sobre os cacos, ele exige que se mude o modo como ouvimos, como nomeamos, como organizamos o mundo, e isso exige uma escuta insubmissa — uma escuta que não procura coerência, mas pulsação, que aceita o erro como estética e a falha como ética.

Mais do que escutar o monstro, é preciso permitir que ele fale sem tradução, que seu gozo sem mediação também seja linguagem, que sua existência [real] seja, por si só, crítica.

Não é o monstro que precisa de mundo — é o mundo que precisa suportar o que ele tentou calar, porque a carne do mundo é esse mesmo monstro a expulsar. A política do reconhecimento falha onde o desejo insiste, e o desejo não busca inclusão, mas fissura.

O problema não está na existência da norma, mas na recusa da fissura, o mundo não quer ser ferido, porém é apenas na ferida que a reinvenção é possível.

Divine, embora o possa, não é uma figura a ser admirada por seu valor estético ou transgressor. O símbolo é uma pedagogia do insuportável, um modo de existir que não se dobra à inteligibilidade: sim, uma biopolítica afirmativa, uma afirmação viva de que o desejo não precisa ser autorizado para ser legítimo.

Divine não performa para agradar ou para ser assimilada; ela goza no desconforto, exibe o que não deve, ri do que é sagrado. Sua performance é um ensaio de destruição da forma — um convite para o fim da estética higienizada da diversidade vendável. Divine não cabe num arco-íris de comercial de banco, ela quer cuspir nele.

O que fazer com o que não cabe? Com o que não se resolve em representação, em empatia, em metáfora política? Divine nos obriga a viver essa pergunta. Ela nos impede de encerrar o estranho em categorias. Ela exige que permaneçamos em relação com o desconforto, com o excesso, com a cena que nunca fecha.

Num tempo em que a diferença é rapidamente assimilada, e o dissenso é domesticado pelo marketing da diversidade, Divine ressurge como fantasma necessário. Não para nos reconciliar com o diferente, mas para nos lembrar que há corpos e existências que não querem reconciliação. Querem perturbar. Querem ferir a norma — e não serem recompensados por isso.

Jack Halberstam, em sua arte do fracasso, nos lembra que há potência política em não corresponder. Divine é isso: a celebração do não caber, do não performar corretamente, do exagero como força vital.

Divine é a recusa de todo pacto com a respeitabilidade. Ela é a deusa de um mundo em ruínas — não porque quer destruí-lo, mas porque revela que ele já estava quebrado.

Essa é a escuta: não aquela que acolhe para apagar o conflito [alô, alô, ideologias!], mas aquela que sustenta a dissonância como campo de relação. Um mundo que se pretenda algo próximo a algum sentido outro de ético não precisa de mais representatividade — precisa de mais fendas, mais vozes incômodas, mais monstros que nos obriguem a repensar as formas como decidimos quem pode falar, existir e gozar.

Escutar o monstro, neste sentido, é escutar o mundo que a normatividade tenta interditar. É recusar o conforto da forma. É habitar o intervalo entre o que é permitido e o que é necessário. É, por fim, transformar a própria escuta em um ato de desobediência sensível.

Divine não quer cura, não quer lugar, não quer legenda. Quer aparecer inteira, suja, fabulosa, cuspindo na ordem. E talvez seja disso que o mundo precise: não de mais sentido, mas de mais presença. De mais monstros que nos devolvam o que tentamos esquecer: que o desejo é, sempre, desvio.

Eliseu Raphael Venturi é pós-doutor em direito e novas tecnologias.

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Last Update: 05/05/2025