É chegada a data da memória dos 40 anos do Programa Especial de Educação – Centros Integrados de Educação Pública (PEE-Ciep), que se consuma de duas maneiras. A primeira a partir do anúncio oficial dada pelo governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, no dia 1º de setembro de 1984, no Palácio do Guanabara, com direito a presença de comitiva internacional e coletiva de imprensa.
E a segunda, com a inauguração predial e respectivo ano letivo do Ciep 001 – Tancredo Neves, em 8 de maio de 1985, no Catete, também conhecido como bairro da ex-capital da República do Brasil, na cidade do Rio. O evento, que veio a ser a inauguração do primeiro e maior programa de ensino educação pública básica e integral implementado por um governo estadual, teve a participação da sociedade civil, da comunidade escolar e autoridades públicas, incluindo o presidente José Sarney.
Sem dúvida alguma é uma data a se recordar, pois o Ciep se tornou tema de diferentes campos sociais, transcendendo a própria pauta pela educação pública, popular e de qualidade. É um legado que se inicia a partir da sua implementação no governo Leonel Brizola (PDT, 1983-1986), sendo germinal como pauta eleitoral na campanha para governador de 1982. O projeto foi implantado entre a redemocratização, em 1985, e a “Constituição Cidadã”, em 1988.
Os Cieps surgem imediatamente ao fim da ditadura militar, sinalizando uma política educacional de caráter democrático, de ruptura com os preceitos tecnocráticos e com a relativização da laicidade. O modelo de ensino que antecedia sua experiência não cumpria o exercício de categorias pedagógicas mais abrangentes para a compreensão da sociedade. Como bem salientou Darcy Ribeiro em conhecida declaração, “a crise da educação no Brasil, não é uma crise; é um projeto”, dando a entender que o ativismo conservador frente à educação é mais sistemático do que algo meramente espontâneo.
Apenas por esta breve conjuntura é possível constatar, de antemão, que o Ciep surge atravessado pelo campo político – e, naturalmente, pelo campo educacional –, mas não se encerrando neles. Seu caráter pedagógico – que, a princípio, seria inovador pelo fato de promover o ensino de educação básica em tempo integral – demonstra ir muito além. O próprio exercício de pôr em prática o ensino em tempo integral exige uma metodologia multidimensional em termos pedagógicos. Do âmbito estrutural ao âmbito cultural, realizou-se uma intersetorialidade, que perpassou desde a urbanização ao fomento artístico, que por fim, mediante ao alto índice de vulnerabilidade social e analfabetismo, promovia literalmente cidadania para os educandos e suas famílias.
Um dos elementos que tornam a gestão do I PEE-Ciep icônica, no âmbito da administração pública, é o fato de em 1986 ser designado 39,25% do orçamento do governo estadual, e 43% do orçamento prefeitura do Rio de Janeiro (Saturnino Braga, 1986-1989, então no PDT), para a educação pública. A presença forte do orçamento destinava-se principalmente nas construções dos próprios Cieps, incluído a chamada Fábrica de Escolas, que gerava peças de cimentos pré-moldadas, conforme previsto pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Durante o I PEE-Ciep, foram construídas (ou ficaram em fase de conclusão) aproximadamente 150 unidades de Ciep. Já quando Brizola voltou ao governo (1991-1994) e lançou o II PEE-Ciep, foi alcançado o total de 506 unidades.
O projeto teve com certeza o maior orçamento já visto para a educação pública, talvez somente comparado com as iniciativas federais de quando o sociólogo Darcy Ribeiro foi ministro da Educação e, subsequentemente, da Casa Civil no governo João Goulart (1961-1964). Com a primeira Lei de Diretrizes e Bases, promulgada em 1961 (LDB/1961), e o primeiro Plano Nacional de Educação (PNE/1962), estabeleceu-se que, nos orçamentos dos entes federados, percentuais de 12% (no caso da União) a 20% (no caso dos municípios) deveriam ser destinados à educação pública. Como demonstrado na pesquisa, de Gomes (2010, p. 43), esse planejamento, “além de cobrir o período de 1963 a 1970, estendendo-se a mais de um governo, associava metas e recursos”.
O secretariado de Educação que compôs o período de implementação do I PEE-Ciep era feito de pessoas icônicas, a começar pelo próprio e já mencionado Darcy Ribeiro, que foi simultaneamente vice-governador, secretário estadual de Ciência e Cultura, além de presidente da Comissão de Educação e Cultura. A Secretaria de Estadual de Educação contava também com Iara Vargas, sobrinha do ex-presidente Getúlio Vargas, fundadora do PDT e deputada estadual mais votada em 1982.
A Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro tinha à frente Maria Yedda, primeira mulher catedrática em universidade brasileira. Maria Yedda reuniu uma equipe que se envolvia com as atividades mais singulares correlatas ao programa pedagógico, dos animadores culturais até a formação continuada dos educadores, do qual a professora Lia Faria, autora do livro, Ciep: A Utopia Possível, é um símbolo e testemunha viva desse processo.
Definitivamente o Projeto Ciep não cabe numa “caixinha”, seja em níveis de pensamento teórico, contextualização histórica ou pensamento prático. Evidentemente, a vivência das experiências de implementação do I e do II PEE-Ciep traz sentimentos mais próximos da realidade, para o bem e para o mal. Mas sob nenhuma condição setores emancipacionistas da educação pública, que prescrevem educação popular, ensino de qualidade, ensino integral, ensino integralizado, gestão democrática e orçamento próprio – e outros tantos elementos demandados por este enorme, diverso e potente campo social, que é o campo educacional –, praticam oposição contumaz ao Projeto Ciep.
Na contemporaneidade, em diferentes dimensões, é notório que o modelo de ensino integral do Projeto Ciep inibiria muitas mazelas, a começar pelos resultados do último Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), de 2023. Embora se possa relativizar, o Ideb traz ao menos dois dados extremamente correlatos ao ensino integral: o primeiro dado, de que os estados que o implantaram ou o mantiveram estão no topo da qualidade de ensino; e o segundo, de que estados pobres que o implementaram tiveram melhores notas do que estados ricos que não o implementaram ou o implementaram em menor proporção.
Por fim, as premissas basilares da educação pública, laica, de ensino básico, integral e popular são emanadas em experiências peculiares e resilientes que veem no Ciep uma referência. Por consequência, demonstram que a trajetória no campo educacional da parcela propositiva por um modelo de educação com participação social e emancipacionista transcende quaisquer que sejam as demarcações político-ideológicas, mantendo o Projeto Ciep como uma prerrogativa de experiência viva para efetivação da melhoria e qualidade do sistema de ensino.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FARIA, L. CIEP, a utopia possível. São Paulo: Livros Tatu, 1991.
GOMES, A. Darcy Ribeiro. Recife: Massangana, 2010.
Dossiê Memória CIEPs – Memória e Informação [periódico digital] – v. 8, n. 1. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2025.