A nova geopolítica do yuan digital: a próxima revolução monetária?

por Fernando Marcelino

É grande a influência norte-americana do dólar: 11 nações soberanas têm o dólar como dinheiro oficial; cerca de 90% das trocas cambiais realizadas no globo são feitas em dólar; 60% dos dólares americanos impressos são usados fora dos Estados Unidos; 59% das reservas mundiais estão em dólar americano. Porém, também é verdade que o sistema Petrodólar, que sustentou o comércio internacional de petróleo e o poder financeiro dos EUA por meio século, enfrenta desafios sem precedentes.

Nascido de acordos da década de 1970 entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita, se assenta em três pilares: petróleo precificado em dólares, transações liquidadas em dólares e receitas do petróleo recicladas em ativos denominados em dólares. Este arranjo tem servido aos interesses norte-americanos, permitindo déficits persistentes a custos administráveis, ao mesmo tempo que proporciona aos Estados do Golfo mercados estáveis ​​e garantias de segurança dos EUA. Agora, três forças poderosas estão convergindo uma mudança profunda: o impulso estratégico da China para reduzir sua vulnerabilidade ao dólar como o maior importador de petróleo do mundo, a necessidade urgente dos países do Golfo por transformação econômica por meio de investimentos massivos em tecnologia e infraestrutura, e inovações revolucionárias em tecnologias de pagamento digital iniciadas pela China que tornam as alternativas aos pagamentos globais baseados no dólar não apenas possíveis, mas potencialmente mais eficientes do que os sistemas tradicionais.

Mesmo que o sistema SWIFT seja a espinha dorsal das transferências monetárias globais, usuários e até mesmo banqueiros reclamam de sua lentidão, com pagamentos levando de um a cinco dias, além de ser caro. O Banco Mundial constatou que o custo médio para enviar US$ 200 de um país para outro girava em torno de US$ 12,50, ou 6,25%. O SWIFT também é responsável por manter proibições a países ou entidades que constam em listas de sanções. A proibição parcial da Rússia de usar a SWIFT em 2022, como parte do pacote de sanções dos EUA, ou a proibição total do Irã e de Cuba são exemplos. Estima-se que mais de um em cada quatro países está sujeito a sanções da ONU ou de governos ocidentais e 29% do PIB global seja produzido em países sancionados.

O “Dia da Libertação” transformou-se no “Dia da Aplicação de Tarifas”, com a assinatura de um Decreto Executivo pelo Presidente Trump, que introduziu tarifas recíprocas sobre os seus parceiros comerciais. Essas tarifas não são aplicadas na forma pura, correspondendo ao diferencial tarifário exato imposto por outros países sobre bens importados. Em vez disso, incluem barreiras “não monetárias”, como taxas de câmbio, normas técnicas e IVA, conforme descrito no relatório sobre barreiras ao comércio exterior do USTR. Essas “tarifas recíprocas com desconto”, como descreveu o Presidente Trump, cobrem cerca de metade do que é cobrado dos EUA. Porém, mais importante que as tarifas, são as sanções. Elas são frequentemente vistas como uma ferramenta de coerção econômica e diplomática, da mesma forma que Trump utilizou tarifas. Mas as sanções visam interromper importações ou exportações para um país, em vez de tributar importações como tarifas. Sua eficácia é mais difícil de avaliar. Uma vez em vigor, são muito difíceis de desfazer.  

Na última década, as sanções dos EUA se tornaram a alternativa punitiva preferida ao conflito ou à intervenção militar, acumulando-se em um ritmo alucinante. Durante o seu primeiro mandato, o Presidente Trump impôs mais de 5.000 sanções, sobre empresas, indivíduos e países. Isso incluiu a reimposição de sanções ao Irã quando os EUA se retiraram do acordo nuclear; amplas sanções econômicas de “pressão máxima” à Venezuela em 2019; e sanções a empresas e setores econômicos na China. Sob Biden, as sanções americanas continuaram a aumentar. De acordo com o Washington Post, o governo Biden adicionou mais de 7.000 sanções ao total dos EUA, mantendo as sanções à China da era Trump. Uma exceção foi o afrouxamento das sanções à Venezuela por Biden para incentivar as negociações para as eleições presidenciais de 2024. Por enquanto, a estratégia de longo prazo de Trump para o uso de sanções permanece obscura. No entanto, ela pode influenciar mais a política, a economia e as alianças internacionais do que o uso de tarifas.

As ações de Trump aumentam a desordem monetária mundial, resultando na deterioração constante da capacidade do dólar de servir como meio de pagamento mundial, moeda de reserva e unidade contábil. Atualmente, 77% de todo o comércio de moeda estrangeira com a China, realizado via SWIFT, exige uma operação cambial em duas etapas, com o dólar sendo usado como intermediário, o que adiciona despesas à transação. Uma empresa brasileira que importa geladeiras da China precisa primeiro converter reais para dólares americanos, que são então convertidos para renminbi chinês na segunda etapa. Como resultado, as geladeiras brasileiras custam mais. Para a China, reduzir a dependência do dólar representa tanto um imperativo econômico quanto uma salvaguarda estratégica contra potenciais sanções. Para os Estados do Golfo, em particular a Arábia Saudita, o que está em jogo é equilibrar sua relação vital de segurança com os Estados Unidos com a necessidade premente de diversificar suas economias e aprofundar os laços com seu maior cliente de petróleo. Para os Estados Unidos, preservar elementos-chave do petrodólar continua sendo crucial para manter seu poder financeiro e o papel global do dólar, embora nem todos os aspectos do sistema atual sejam igualmente vitais para os interesses americanos.

A estratégia da China concentra-se na criação de alternativas viáveis ​​para funções específicas, em vez de tentar substituir totalmente o papel internacional do dólar. Ela alcançou rapidamente um grau relativamente alto de inclusão financeira (acesso de indivíduos a produtos e serviços financeiros) como resultado do desenvolvimento de diversas plataformas financeiras de larga escala que utilizam tecnologia financeira (fintech) para reduzir o custo da prestação de serviços financeiros. As mais notáveis ​​são as duas empresas, Ant Group e Tencent, que começaram com pagamentos digitais, mas se ramificaram para outros serviços bancários, como produtos de investimento e empréstimos. Ao mesmo tempo, o Banco Popular da China (BPC) vem desenvolvendo uma moeda digital de banco central (CBDC), especificamente o yuan digital. O yuan digital tem uma ligação com o yuan tradicional em termos de valor, mas poderia atuar em transações digitais de varejo em um sistema de pagamento centralizado.

Com um robusto ecossistema de pagamentos digitais doméstico, a China fez um movimento estratégico e silencioso em pagamentos internacionais que está remodelando os fundamentos das finanças globais. O Banco Popular da China (PboC) anunciou que seu sistema digital de liquidação transfronteiriça em RMB será totalmente conectado às dez nações da ASEAN e seis países do Oriente Médio, o que implica que cerca de 38% do comércio global poderá ignorar a rede SWIFT dominada pelo dólar americano. Ao contrário do SWIFT, onde as transações levam de 3 a 5 dias e envolvem múltiplos intermediários, a moeda digital chinesa está pronta para fazer a ponte e reduzir o tempo de processamento para apenas alguns segundos. A velocidade e a transparência do sistema estão forçando uma reavaliação das estruturas dependentes do dólar, especialmente em mercados emergentes. Sua arquitetura de blockchain aplica protocolos antilavagem de dinheiro automaticamente, reduzindo os riscos de fraude e mantendo a rastreabilidade. Essa eficiência já atraiu 23 bancos centrais, com traders de energia do Oriente Médio relatando uma queda de 75% nas despesas de liquidação. A estratégia da China se estende além dos pagamentos. O RMB digital é entrelaçado em projetos de infraestrutura como a Ferrovia China-Laos e a Ferrovia de Alta Velocidade Jacarta-Bandung, formando uma “Rota da Seda Digital” que combina fluxos de moeda com corredores comerciais. Ao implementar rapidamente o RMB digital nas economias da ASEAN e do Oriente Médio — cobrindo 38% do comércio global — a China efetivamente armou a tecnologia blockchain para desafiar o domínio do SWIFT e do dólar. Isso sinaliza uma mudança tectônica nas finanças globais com implicações profundas para o Ocidente e o dólar americano.

O Banco Popular da China (PBOC) começou a trabalhar em projetos para o desenvolvimento de uma estratégia centralizada de moeda digital desde 2014. Originalmente concebido como um projeto de moeda digital/sistemas eletrônicos (DCEP), o e-CNY foi introduzido como um piloto em 2019, sendo criado principalmente como um CBDC de varejo doméstico para pagamentos diários, mas com uma forte disposição para explorar gateways para sua internacionalização em um futuro previsível. Shenzhen, Suzhou, Chengdu e Xiong’an — grandes cidades modernas que incorporam o crescente perfil econômico da China — foram escolhidas como os primeiros campos de teste e, desde então, esse exercício tem sido gradualmente expandido para outras áreas metropolitanas, a maioria das quais está localizada em regiões costeiras ricas.

O yuan digital foi integrado a vários aspectos da economia da Grande China. É usado para transações de varejo, transporte público e pagamentos de salários de funcionários públicos em grandes cidades como Pequim. Durante as Olimpíadas de Inverno, o yuan digital foi um dos três métodos de pagamento aceitos, destacando seu papel crescente na vida cotidiana. Além disso, o Banco Popular da China (PBOC) firmou parcerias com gigantes da tecnologia como Tencent e Alibaba para facilitar transações em yuan digital por meio de plataformas como WeChat e Alipay, garantindo ampla acessibilidade. Atualmente, existem sete bancos comerciais que fornecem e-CNY — o Banco Industrial e Comercial da China, o Banco Agrícola da China, o Banco da China, o Banco de Construção da China, o Banco de Comunicações, o Banco de Poupança Postal da China e o Banco de Comerciantes da China — e dois bancos online, o WeBank (WeChat Pay) e o MyBank (Alipay). Os usuários podem acessar o yuan digital por meio de aplicativos de bancos comerciais ou do aplicativo e-CNY do Banco Popular da China (PBC). O yuan digital permitiria ao governo chinês exercer maior controle sobre a oferta e a circulação monetária doméstica, com o objetivo de minimizar fraudes, lavagem de dinheiro e corrupção, e oferecer uma alternativa de pagamento digital mais segura e regulamentada às criptomoedas. 

O novo sistema de pagamentos da China representa uma grande mudança na transferência internacional de dinheiro. Em particular, o yuan digital poderia fornecer uma alternativa ao dólar americano em regiões onde a China tem influência econômica substancial. Por exemplo, a promoção da moeda como meio preferencial para transações comerciais e financeiras em projetos vinculados à Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) fortaleceria os laços econômicos da China com países parceiros e aumentaria sua influência sobre seus sistemas monetários, ao mesmo tempo em que reduziria a dependência do dólar americano e de sistemas de pagamento internacionais ocidentais, como o SWIFT. Estabelecer o yuan digital como uma alternativa viável ao dólar americano também poderia reduzir a vulnerabilidade da economia chinesa à política monetária americana (como ajustes nas taxas de juros, que influenciam o comércio e os investimentos denominados em dólar) e às sanções financeiras.

O catalisador mais provável para a internacionalização do yuan digital é a BRI. A moeda poderia ser adotada para transações dentro dos projetos da BRI, especialmente na Ásia e na África, devido ao envolvimento direto de empresas e bancos chineses. Como a BRI incentiva a conectividade e a cooperação entre os países participantes, ela poderia promover um ambiente que usa o yuan digital como moeda transacional compartilhada. Se o yuan digital for adotado pelos países da BRI e por aqueles que estão econômica, política ou estrategicamente alinhados com a China ou simplesmente desejam reduzir sua dependência do dólar americano por qualquer motivo, isso poderia resultar em um sistema financeiro internacional bifurcado, no qual um lado é liderado pelo dólar americano e o outro pelo yuan digital. Isso intensificaria ainda mais a competição estratégica entre a China e os Estados Unidos, interrompendo os fluxos de comércio e investimento e potencialmente fomentando a instabilidade cambial. Embora existam desafios para sua aceitação no mercado interno e adoção no exterior, na próxima década é possível que o yuan digital ganhe alguma força em ambas as frentes, dada a determinação de Pequim e os esforços concentrados para promover seu uso.

No entanto, existem desafios significativos para a adoção global do yuan digital para pagamentos internacionais. A China mantém uma conta de capital fechada, o que significa que empresas, bancos e indivíduos não podem movimentar dinheiro para dentro ou para fora do país, exceto em conformidade com regras rígidas. Esses controles rigorosos de capital são projetados para restringir atividades especulativas e impedir a fuga de capitais, mas, ao mesmo tempo, restringem a liquidez global do yuan. Presumivelmente, essas restrições também se aplicarão ao yuan digital no futuro, e a disponibilidade limitada da moeda tem o potencial de criar desafios de conversão — ou seja, dificuldades para converter grandes somas de dinheiro para dentro ou para fora dela. Essa oferta limitada também pode impactar a taxa de câmbio da moeda, levando a maiores flutuações em resposta às mudanças na demanda, causando instabilidade nos mercados globais onde o yuan digital desempenhará um papel fundamental.

 A ideia de que o e-CNY representa uma proverbial solução mágica com a força necessária para acelerar a ascensão internacional do renminbi de forma meteórica da noite para o dia está completamente fora da realidade. É muito mais provável que esta unidade monetária digital desempenhe um papel fundamental na “longa marcha” incremental da internacionalização do RMB de várias maneiras, especialmente à medida que a digitalização das trocas econômicas macro e de varejo prospera por meio do comércio eletrônico. Como um vetor de interconexão financeira e monetária alinhado com a “rota da seda digital”, o e-CNY pode participar de projetos geoeconômicos emblemáticos liderados pela China, como a Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP), a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) e o Sistema de Pagamentos Interbancários Transfronteiriços (CIPS). Embora essas estruturas pudessem se conformar ao esqueleto da crescente ordem econômica internacional paralela de Pequim, o e-CNY fluiria como sua força vital.

O yuan digital vem gradualmente ganhando força, com os volumes de pagamento apresentando um aumento constante, atingindo aproximadamente US$ 250 bilhões em transações até meados de 2023. Embora o yuan digital represente atualmente uma parcela modesta do volume monetário total da China, sua adoção continua a crescer à medida que mais usuários se familiarizam com seus benefícios. À medida que a conscientização e o uso se expandem, o yuan digital está pronto para desempenhar um papel cada vez mais significativo no cenário financeiro da China, oferecendo uma alternativa apoiada pelo Estado que se alinha aos objetivos econômicos mais amplos do país. 

Esses pagamentos não irão “destronar, derrubar ou desbancar” o dólar, mas ainda assim terão um impacto profundo. O yuan digital não precisa “derrubar” o dólar para ser disruptivo. Também é importante observar que o governo chinês, que detém US$ 3,2 trilhões em reservas em moeda estrangeira, nunca declarou que buscava derrubar o dólar. O dólar não será derrubado, mas as mudanças sutis e profundas das plataformas do yuan digital trarão aos pagamentos comerciais e à solidificação de alianças regionais não baseadas no dólar. Embora a desdolarização completa do comércio de petróleo seja altamente improvável nos próximos cinco anos, espera-se uma erosão gradual do uso do dólar na liquidação do comércio de petróleo e a reciclagem global das receitas do petróleo. A desdolarização será lenta até que um dia, provavelmente desencadeada por um choque econômico ou calamidade, ela deixará de ser.  A questão não é se os países asiáticos e do hemisfério sul continuaram a usar dólares como base de câmbio, coisa que provavelmente continuarão a fazer ainda por muito tempo, mas saber se eles continuaram a colocar o superavit de seus balanços de pagamento à disposição dos órgãos controlados pelos EUA ou se usarão como instrumento de emancipação do Sul.

Fernando Marcelino é analista internacional, doutor em sociologia na UFPR e militante do MPM – Movimento Popular por Moradia

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Last Update: 05/05/2025