Geoeconomia, história e a falta que faz o pensar em desenvolvimento nacional e a soberania brasileira
por Cintia Neves Godoi e Carlos José Espíndola
O bonde da história nos parece um cometa, de tempos em tempos aos nossos olhos, nos permite vislumbrar um fenômeno que poderia transformar vidas, e que poucos vislumbram e veem com mais perfeição as miragens e imagens, muitos veem apenas uma feixe de luz rápido riscando o céu, e a maioria não se lembra de mirar, ou não pode porque está trabalhando ou tem que ir dormir porque levanta cedo para a labuta no dia seguinte.
O tarifaço de Trump parece expor um novo cometa. Em matéria recente no Global Times a chamada apontou: “China acelera transição para soja brasileira, enquanto exportações agrícolas dos EUA despencam com tarifas” . Esta matéria expôs que o atual confronto tarifário iniciado pelos EUA já está impactando as exportações agrícolas dos Estados Unidos, com quedas de 50% nas vendas de soja e 72% na carne suína para a China em abril de 2025, de acordo com dados do USDA. A matéria também expôs que enquanto os Estados Unidos somam as perdas, a China acelera a diversificação de suas importações, registrando um aumento de 48% nos carregamentos de soja brasileira no porto de Zhejiang, com previsão de 700 mil toneladas em abril. O texto reforçou o argumento de que a China pode substituir produtos americanos por fornecedores como Brasil, Argentina e Austrália, reduzindo a participação dos EUA no mercado chinês — que já caiu de 40% para 18% nas importações de soja desde 2016. Li Yong, analista de comércio internacional, alertou que o protecionismo dos EUA prejudica seus próprios agricultores, e a solução seria a suspensão das tarifas para evitar perdas irreversíveis.
Para além dos desafios estadunidenses, o que se busca neste artigo é chamar a atenção para as possibilidades que se apresentam ao Brasil.
Análises da Geografia já apontam há anos os desafios para uma geografia econômica que leve em consideração os processos em mudança.
Sampaio e Medeiros (2020) destacam que a geografia econômica global passa por novas transformações, com antigos países emergentes se consolidando como polos de produção tecnológica avançada em diversos setores, além de protagonizarem iniciativas como a criação de uma nova moeda internacional, buscando reduzir a dependência do dólar e enfraquecer a hegemonia dos Estados Unidos.
Estas mudanças colocam países como a China em posição central a partir de suas estratégias para próprio crescimento econômico e desenvolvimento, em função das guerras comerciais travadas, dentre outras ações. Suas profundas transformações acarretam pressões aos países da Europa e aos Estados Unidos, e ao mesmo tempo se desdobram em aproximações com países como Irã e Rússia e geram ainda mais concentração de poder e riqueza nestas relações conflituosas.
Segundo Sampaio e Medeiros (2020), a tentativa de reafirmação da hegemonia por parte dos Estados Unidos e da Europa tem impulsionado diversas estratégias, incluindo tanto a guerra comercial com a China, que contribui para a formação de novos blocos geopolíticos liderados por países como China, Rússia e Irã, quanto a reaproximação entre EUA e Europa com o objetivo de conter o avanço econômico e a crescente influência chinesa no Sul Global, intensificada por meio de grandes investimentos, como os realizados na iniciativa da Nova Rota da Seda.
Nos esforços de retomada da hegemonia pelos Estados Unidos, diversas ações e estratégias também são utilizadas, dentre elas o atual “confronto tarifário” como mencionado na reportagem acima. Neste confronto, fica evidente que novos países aparecem para integrar as aproximações chinesas.
Desta maneira, mesmo que o Brasil ao longo de sua trajetória histórica tenha sempre tido um papel bastante pressionado, precavido e tímido em aproximações com a China, via sedimentação de sua participação na Rota da Seda, por exemplo, a realidade meteórica parece pressionar para novas oportunidades.
É por isso e por outras razões que termos como geoeconomia parecem ser importantes para os atuais exercícios reflexivos de uma nova geografia econômica.
Segundo Egler e Matos (2012), o termo “geoeconomia” se tornou mais conhecido a partir da obra O turbocapitalismo, embora seu uso remonte ao início do século XX, quando foi empregado por um geólogo alemão. Posteriormente, diversos autores retomaram o conceito.
Para Pfeiffer (2022), o geólogo Röpke utilizou originalmente o termo para expressar a relação entre geologia e economia prática. Pfeiffer (2022), Mercille (2008) identificaram três principais abordagens no campo da geografia sobre a geoeconomia, são elas: o controle e exploração de recursos naturais; os imperativos da economia global; e os fluxos de comércio, finanças e capital no espaço global, considerando os aspectos políticos subjacentes a esses movimentos.
Para Bauman (2025), a geoeconomia surgiu como uma evolução da racionalidade geopolítica, mantendo elementos relacionados aos conflitos de poder, mas transferindo o foco da dimensão geográfica para a atuação estratégica por meio de mecanismos de mercado. O termo, cunhado na década de 1990 e atribuído a Edward Luttwak, é compreendido como um desdobramento da geopolítica tradicional.
Egler (2006) argumentou que, enquanto a geopolítica se baseia no controle estratégico de territórios, a geoeconomia opera principalmente por meio da logística das redes. Para o autor, não se trata de campos excludentes, mas sim complementares, cuja articulação define as relações espaciais de poder entre diferentes domínios e fronteiras. Posteriormente, Egler e Matos (2012) apontaram que a geoeconomia ganhou destaque nas escolas americana e alemã nas primeiras décadas do século XX, sendo posteriormente difundido pelas análises de localização geoeconômica propostas por Perroux (1955).
Mais recententemente Martins e Nonnenberg (2025) observaram que a geoeconomia está relacionada à intensificação das disputas comerciais e à competição por áreas de influência, ressaltando o papel dos fluxos, rotas e redes nas dinâmicas internacionais. Para os autores, trata-se do uso estratégico de instrumentos econômicos com o objetivo de promover e proteger interesses nacionais.
Crowe & Rawdanowicz, 2023, Baka, 2025 apud MARTINS; NONNENBERG, 2025 também defenderam que o termo geoeconomia apoia compreensão das estratégias de defesa de interesses nacionais.
Crowe e Rawdanowicz (2023) e Baka (2025) ressaltaram que o fortalecimento do conceito de geoeconomia ocorre em um contexto global marcado por transformações estratégicas, nas quais o foco deixa de ser exclusivamente militar ou territorial, como na geopolítica tradicional, para incorporar o uso de instrumentos econômicos. Entre esses mecanismos, destacam-se políticas comerciais seletivas, sanções e estratégias como o nearshoring e onshoring, que redesenham cadeias produtivas com base em alianças geopolíticas e interesses nacionais.
Para Bauman (2025) a geoeconomia é algo mais fácil de identificar do que escrever sobre, representa uma forma de exercício de poder internacional, voltada ao aumento da influência global de países com maior protagonismo, se manifesta por meio de restrições bilaterais, ações em organismos multilaterais e políticas comerciais seletivas, podendo parecer ações isoladas, mas compondo um plano articulado de dominação. O referido autor apontou que a geoeconomia, embora estreitamente relacionada à geopolítica, distingue-se por enfatizar as ações estratégicas de países com relevância internacional, que utilizam tanto medidas bilaterais restritivas quanto a atuação em organismos multilaterais. Essas ações, que à primeira vista podem parecer pontuais e desconectadas, fazem parte de uma estratégia mais ampla voltada à ampliação do poder no cenário global.
A partir destas ideias é possível compreender que a geoeconomia parece ser uma dimensão econômica do exercício de poder em cenário internacional. E, a partir do cenário atual, parece imprescindível considerar o caso brasileiro, que, historicamente se colocou como pragmático, não se alinhando diretamente em momentos decisivos, não se vinculando com estreiteza à Europa e Estados Unidos, muito menos à China, mas que em um atual contexto de geoeconomia tem sido pressionado a um alinhamento com o mercado chinês, pelas ações da própria China, e por desdobramentos das proteções recentes estadounidenses.
Com isto é preciso considerar a necessidade, ou a falta de um projeto de desenvolvimento nacional para que o próprio Brasil possa levar em consideração as suas demandas sociais, políticas, econômicas e ambientais e tomar decisões com base em um projeto de autonomia, soberania e desenvolvimento nacional, sob pena, de mais uma vez, não dar conta de atender demandas externas, com reinvestimentos necessários para um projeto de estado-nação forte, e sob pena das pressões ambientais, de fato, não darem conta de atender a geoeconomia atual global, sem minar as potencialidades territoriais e sociais brasileiras.
Aquele modelo pragmático do Brasil parece ter garantido alguma segurança nos tempos de geopolítica e militarismo, dialogando ora com Estados Unidos, ora com Alemanha, em busca de projetos industriais, dentre outros aspectos.
No entanto, diante do cenário atual, cabe ao Brasil considerar seu papel frente a intensificação das relações comerciais com a China, especialmente em áreas como agro exportação e infraestrutura logística, que devem ser acompanhadas de políticas assertivas, capazes de posicionar o país como ator estratégico e fornecedor de commodities mas, vislumbrando o futuro.
A geoeconomia, ao destacar a lógica do poder por meio do mercado, escancara as possibilidades e riscos da nova ordem global. O Brasil, com sua base produtiva agrícola e energética robusta, localização geoestratégica no Atlântico Sul, e sua potencialidade ambiental pode e deve exercer influência nessa nova geografia econômica. Para tanto, exige-se visão de longo prazo, inteligência geográfica, investimentos para e na sociedade, em infraestrutura, diplomacia econômica dentre outros aspectos.
Como no caso do cometa, o tempo de visibilidade deste feixe é curto. É preciso mirar e agir antes que a oportunidade se perca no horizonte das potências que já traçaram e criaram condições para ver, com precisão, seu futuro, suas demandas e rotas.
Referências:
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Cintia Neves Godoi – Doutora em Geografia e Professora de Geografia
Carlos José Espíndola – Doutor em Geografia e Professor de Geografia
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