Nos últimos dias explodiu nas redes o pastor mirim, você deve ter visto. Ele já vinha fazendo sucesso, é verdade. Aliás, já haviam muitos memes também. Mas falar em línguas parece que foi a gota d’água.
Mas isso, por si só, não explica o episódio. Outros evangélicos também falam em línguas. Michele Bolsonaro repercutiu nas redes ao falar em línguas durante a nomeação de André Mendonça para o STF em 2021.
Para quem desconhece, é comum na tradição pentecostal e neopentecostal que se fale em línguas. O termo técnico é glossolalia e, quando não se trata de transtorno mental, faz parte dos rituais e performances comuns como em qualquer outra religião (incorporar entidades, falar com espíritos, exorcismos). O episódio remete ao Pentecostes relatado no livro bíblico dos Atos em que pessoas de línguas diferentes puderam se compreender por ação do Espírito Santo.
Há um debate teológico se esse entendimento se deu entre línguas humanas diferentes (judeus, romanos, galileus, elamitas etc.) ou em línguas celestiais. Mas fato é que, já que seria realmente um milagre alguém começar a falar hebraico ou qualquer outra língua conhecida no altar, é mais conveniente falar em línguas celestiais estranhas. Quem vai poder julgar?
E é aqui a coisa começa a ficar caricata. Por que em um dos vídeos, após falar em línguas durante a benção a um casal que viajaria para os Estados Unidos, o tal pastor mirim tentou traduzir para o inglês e isso ficou tão compreensível quanto estava nas línguas celestiais. Não tinha sentido nenhum, nem na suposta língua dos anjos nem em inglês.
Como práticas religiosas, tais fenômenos precisam ser compreendidos e respeitados – o que não significa que as religiões não possam ser criticadas. Seria fácil enveredar pelo argumento de que se trata de “mais um crente oportunista”. Mas se não formos sérios na crítica, corremos sempre o risco de ficar no nível do simples preconceito.
O fato é sim um caso de espetacularização da fé. É problemático inclusive por envolver um jovem de 14 anos. Também pela associação visceral e ideológica que a ala majoritária do neopentecostalismo vem construindo com projetos reacionários e autoritários. Mas a crítica da tríade mídia-poder-religião merece um texto só para isso.
O episódio do pastor autointitulado profeta, devidamente registrado, cortado e descontextualizado caiu no gosto da redes. Proliferaram memes, acusações, remixes de funk e de brega. Vejam só a ironia, a crítica do oportunismo vai só até ali e, no final, estão todos caçando like.
Aliás, estamos todos falando em línguas também. Num ecossistema midiático baseado em bolhas é difícil transitar entre elas. Se eu mostrasse meus memes e figurinhas para minha mãe ela me perguntaria que língua é essa e qual a graça nisso tudo. O pastor mirim é só a caricatura mais caricata entre todas caricaturas.
A midiatização e performatividade fazem parte da nossa vida e da nossa cultura. Há quem fale, inclusive, em uma dimensão midiática da existência – um biosmidiático. E do mesmo jeito que por fotografarmos nossos pratos para postar no Instagram os restaurantes logo começaram a fazer pratos cada vez mais “instagramáveis”, todas as nossas outras relações sociais vão também se adequando a cultura mediada pelos algoritmos de curadoria. Mesmo que isso nos empurre para uma caricatura de nós mesmos. Afinal, não basta ser, é preciso aparecer (postar).
O algoritmo vai aprendendo nossos gostos conforme usamos as redes, mas nós também vamos nos adaptando e se submetendo à lógica dos algoritmos. Por mais desigual que seja essa relação, é uma dupla determinação.
E existe um aspecto estético perverso nessa dinâmica. Se falamos em línguas nas redes – o que se diz em uma bolha é incompreensível em outra (vide o caso dos jovens incels e seus pais) – a compreensão por parte do outro não é um objetivo. Não importa se o outro me entende. Eu me identifico com minha bolha e essa percepção me basta. É suficiente para que eu poste na minha rede social. Se você não entendeu, não era para você. O esforço para a construção do comum é minado. E sem esse comum, verdadeiramente compartilhado, não existe possibilidade de diálogo.
Se a dinâmica não é a de comum e do diálogo, tanto faz a racionalidade. Ela perde sua utilidade e a forma fica livre para fluir no campo dos afetos – seja amor, do riso ou do ódio. Ou seja, pouco importa entender as línguas celestes. Mais vale as emoções que ela desperta. Já abriu uma rede social e teve a sensação de que todo mundo estava gritando com todo mundo sem se entender?
O fenômeno dos pastores mirins não é novo, nem termina aqui. Esse é um debate a parte. Mas o fato recente diz muito sobre uma dinâmica cultural de nosso tempo. É tudo para ontem, sem reflexão ou elaboração, caricatura sobre caricatura, cada qual falando em línguas para sua bolha. Só isso explica que o pastor mirim tenha desencadeado uma enxurrada remixofágica de novos (ou velhos) conteúdos.
A ideologia neoliberal, que tudo quer acelerar e tem nas plataformas de mídias sociais o catalizador ideal, vai corroendo as bases da experiência que nos exige tempo e contemplação. É tudo novidade mesmo que não tenha nada de novo. Não por acaso o meme é um dos ícones culturais do nosso tempo. É como se a história não tivesse mais tempo de se repetir. O meme é ao mesmo tempo a tragédia e a farsa. Acontecendo em simultâneo. O neoliberalismo que é a velha tragédia capitalista repetida como a farsa da inovação, não poderia ter um representante cultural melhor do que o meme.