Peça 1 – o republicanismo como fator de enfraquecimento

O escândalo do INSS tem o condão de ressuscitar todos os fantasmas da campanha do impeachment e alimentar definitivamente a volta da ultra-direita.

Saliente-se que há uma enorme diferença entre as armas dos governantes democratas e dos autoritários.

Os escândalos do INSS foram gerados no governo Bolsonaro. O que fez o Ministro da Justiça, Sérgio Moro? Nada. Bolsonaro ordenou que não se metesse, e ele não se meteu.

Já o governo Lula permitiu plena liberdade à Polícia Federal. O resultado foi a Operação Cessação, que implodiu o esquema. O que poderia ser o maior feito do governo Lula transformou-se na principal ameaça. Não se surpreenda se, nas próximas semanas, explodirem manifestações contra o governo.

O escândalo mostrou um amadorismo mortal, a começar da Casa Civil, mas passando por outros ministérios.

O governo Lula depende de uma coalizão coalhada de políticos suspeitos. Se o loteamento é inevitável, o caminho lógico seria mapear as áreas mais sensíveis e montar um acompanhamento permanente.

Na era da digitalização, caberia à Casa Civil ou ao Ministério do Planejamento e Gestão a criação de indicadores de monitoramento de todos os organismos geradores de despesa ou receita.

Mas o problema maior é a falta de familiaridade da Casa Civil com temas políticos nacionais. Fosse um Ministro experiente, desde o início faria questão de se informar de todas as operações sensíveis da Polícia Federal. E providenciaria para que o anúncio da operação fosse feito pelo próprio Presidente da República.

Um escândalo capaz de decidir as próximas eleições foi deixado ao léu.

Peça 2 – o fator gestão

A maneira de contrabalançar esse escândalo, seria o governo anunciar um choque de gestão real, concreto, tanto da Previdência quanto nos outros braços do Estado.

  1. Trariam Nelson Machado, conversariam com o Movimento Brasil Competitivo, envolveriam a ENAP (Escola Nacional de Administração Pública), a plataforma SISP (Sistema de Informações dos Recursos de Tecnologia da Informação), montariam um conselho de gestão com instituições do setor privado e dos movimentos, e apresentariam um choque de gestão. Revisariam processos, envolveriam as agências do INSS em competição para a redução de prazos, premiaram as melhores, instituíram normas de compliance. Tudo tendo como principal objetivo o segurado.
  2. O Ministério da Gestão criaria um Conselho de Gestão pela qualidade, para espalhar o conceito por todos os órgãos públicos.
  3. O Ministério de Orçamento e Planejamento revigoraria sua área de análise de eficiência, com foco na qualidade da entrega de serviços.
  4. O próprio Presidente da República empunharia a bandeira da gestão.

O pior que poderia acontecer seria o governo se contentar com uma troca burocrática de Ministro.

Peça 3 – o mal estar geral

Não se espante, portanto, com a sensação geral de mal-estar.

Em São Paulo, por onde se anda vê-se a construção de enormes espigões de escritório e residência. Há muito tempo não via tanta construção no centro expandido. No último feriado, as estradas coalharam de veículos, em todas as direções, Fernão Dias, Bandeirantes, Dutra, as estradas para o litoral. 

Ou seja, os sinais de melhora da economia são nítidos. Mas as pesquisas mostram desalento. Reclamam da alta de preços, que a vida está ruim. Nem se pense que haja dedo da conspiração das pesquisas, embora tenha certeza de que há na mídia. O sentimento de desalento é perceptível. Como é possível esse desacoplamento entre realidade e expectativas?

Primeiro, pelo fato de que não há nenhuma expectativa em relação ao futuro. Em relação à macroeconomia, o único fator de otimismo é que a Selic, que já está em indecentes 14,25% provavelmente não irá a 14,75% na próxima reunião do Copom, mas para 14,50%. Ufa!

O desalento do setor produtivo tem correspondência no campo beneficiado, o mercado. O primeiro, porque paga a conta. O segundo, porque o pessimismo é sua principal arma de dominação da política econômica. E a mídia referenda. Então, todo dia tome editorial contra a gastança, contra o aumento da dívida pública – cujo principal fator é a taxa de juros. E se escondam todos os fatos positivos.

Esse mal-estar surge no andar de cima e se espalha pelo andar de baixo através das redes sociais e da máquina da ultra-direita. Valem-se preferencialmente de notícias dispersas. Enquanto isto, a frente progressista não dispõe de uma ideia chave aglutinadora. E sua maior liderança, Lula, é uma luz até agora sem energia.

Peça 4 – intervalo para recordação pessoal

Não me esqueço de meu encontro com Xixo, Moacir Carvalho Dias, fundador da Leiteria Poços de Caldas, adquirida depois pela Danone.

Na campanha presidencial de Getúlio, ele desfilava com sua cabriolé pela cidade, fazendo campanha para Eduardo Gomes – já acossado pela contra-campanha sobre os marmiteiros. A mineirada brincava: “Cada volta, o Brigadeiro perde um voto”.

Em plena ascensão da popularidade de Lula, encontrei Xixo, surpreendentemente conservado para a idade, no estacionamento do Bradesco, em Poços de Caldas. Ele elogiou Lula e lamentou o que ocorrera com Getúlio:

  • Todo mundo dizia horrores dele. Só muito tempo depois descobri tudo de bom que ele fez.

Peça 5 – o maior líder contra a ultradireita

Vamos aos exemplos de contra-senso.

Lula tornou-se a esperança civilizatória não apenas no Brasil, mas no plano mundial. Lula é visto como a maior esperança do mundo civilizado contra a ditadura da ultradireita. Como Steve Bannon prognosticou tempos atrás, a maior ameaça à ultradireita é Lula.

Confira-se o artigo “Lula em Perspectiva Global”, de Chris Thornhill, Professor Titular de Direito Constitucional Comparado da Universidade de Birmingham, publicado por Jamil Chade na Uol. 

  • A democracia brasileira não é frágil, mas sim alvo de reações hostis justamente por seus avanços. Desde 2003, Lula promoveu mudanças sociais significativas que colocam o Brasil entre os maiores exemplos de democracia progressista no mundo. Nenhum outro líder eleito da esquerda democrática global teve impacto comparável na redução da pobreza e na construção de um Estado de bem-estar social como Lula.
  • Embora traços desse modelo existissem desde Vargas e tenham sido reforçados pela Constituição de 1988, foi apenas com Lula, a partir de 2003, que tais direitos passaram a ser efetivamente garantidos para a maioria da população. Isso transformou o Brasil na mais populosa democracia com um sistema de bem-estar razoavelmente robusto — um feito sem precedentes na história democrática recente.
  • Essa originalidade, no entanto, também traz fragilidades: as políticas públicas permanecem instáveis, sujeitas a retrocessos com mudanças de governo, e fortemente dependentes de lideranças específicas como Lula. 
  • O retorno da agenda progressista em 2022/2023 demonstra a resiliência das instituições brasileiras, que resistiram às tentativas autoritárias e permitiram a retomada da política de inclusão social. Portanto, ao invés de lamentar uma suposta fragilidade democrática, o Brasil deveria ser reconhecido por seu papel inovador e robusto no avanço da democracia social no século XXI.

O que faltaria, então? Falta Lula. 

Há muita coisa em andamento, muito projeto em construção, só possível em um governo racional. 

Quando se acompanha o noticiário da Presidência, que chega por WhatsApp, mas nunca transborda para as folhas dos jornais, percebe-se que, apesar das restrições fiscais, o futuro do país está sendo definido agora: reconstrução dos setores do Estado destruídas pelo bolsonarismo, negociações com China e Japão, acordos sendo iniciados e políticas de longo prazo sendo definidas.

Mas o governo não consegue transformar esse trabalho em um projeto político

Não há um plano de metas, que sintetize para a opinião pública a construção do futuro. Não há iniciativas de impacto que projetem o Conselhão como o embrião de um pacto nacional. Não há nem sinal de reação contra os esbirros autoritários das lideranças do Centrão. Não há nenhum aproveitamento da inteligência que repousa em vários órgãos públicos. E, principalmente, não há atuação política de Lula mostrando a construção do futuro.

Antes da prisão de Lula, palestrei em um evento da Confederação Nacional dos Metalúrgicos. Lula falou em seguida. Seu discurso foi matador, uma capacidade única de identificar os fatores efetivamente relevantes de desenvolvimento e transmiti-los em linguagem popular. Comentei com um colega: só tiro para parar Lula nas próximas eleições.

Depois, o Supremo Tribunal Federal e uma opinião pública desvairada lançaram ele na prisão, de onde foi retirado por ser o único apto a salvar o país do caos.

Peça 5 – os desfechos possíveis

Tem-se, então, um quadro paradoxal.

De um lado, o maior símbolo mundial da resistência progressista: Lula. De outro, o avanço sistemático da ultra-direita nesse antijornalismo ululante, de tratar Tarcisio de Freitas como um político de direita normal.

Tarcísio está transformando a Polícia Militar em uma milícia. Seu Secretário de Segurança, Guilherme Derrite, está demitindo todos os oficiais legalistas, substituindo pelos matadores do BOPE (Batalhão de Operações Especiais). Não se trata apenas do planejamento sistemático de homicídios, mas da transformação nítida em milícias fascistas com objetivos políticos.

Veja-se o que aconteceu com as manifestações do BOPE de São josé do Rio Preto, imitando as cerimônias da Klu Klux Kan. 

Pergunte se houve alguma punição, ou aos PMS responsáveis por assassinatos a sangue frio, documentados por vídeos espalhados pela Internet.

Se não são evidências nítidas de um governador fascista, investindo nas futuras milícias armadas, seria o quê? O que ocorreria na eventualidade de Tarcísio presidente?

Certamente repetiria o modelo Bolsonaro, de invasão da administração pública pelos militares, da abertura indiscriminada de aumento nos rendimentos militares. E como se comportaria a corporação em um eventual governo Tarcísio, com ele substituindo o Alto Comando legalista por filhos dos porões da ditadura, por órfãos de Silvio Frota?

Nada isso importa: Tarcísio é a garantia de privatização da Petrobras, de invasão das universidades por tutores militares, da revanche final da ultra-direita, espelhado no exemplo do tutor maior: Donald Trump.

Se parasse a história agora, a contribuição de Lula à democracia já estaria estampada nos livros de história. Não serão necessários muitos anos para o reconhecimento dos Xixo de hoje. É uma biografia épica, do político condenado à prisão pela mais alta corte do país, e retirado dela pela mesma corte, quando viu nele a única alternativa contra a ditadura bolsonarista.

Mas tem que cair a ficha de Lula para um fato. Não há férias nem aposentadoria para personagens da história. É hora de, a exemplo de Charles Laughton em “Testemunha de Acusação”, pegar novamente o chapéu de metalúrgico e completar seu trabalho maior: a consolidação definitiva da democracia no país.

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Last Update: 04/05/2025