O identitarismo, apesar dos reveses do último período, continua na política de um setor considerável da esquerda pequeno-burguesa, especialmente de sociólogos, analistas e gente do movimento negro e de mulheres.
A realidade é que a questão identitária tem dado emprego para alguns poucos escolhidos de determinados movimentos identitários, e, como já demonstrado em uma série de denúncias, é um alpinismo social às custas da situação do negro, da mulher, etc.
Recentemente, um redator do Brasil 247, chamado Ivan Rios, afirmou, após ver o filme Pecadores (2025) que “o Brasil, marcado pela resistência e pelos genocídios de negros e indígenas, pode ser retratado sob a perspectiva dos historicamente oprimidos — os que há séculos enfrentam tentativas de silenciamento e apagamento de sua identidade”.
Segundo o redator, o filme de terror, que retrata os anos de segregação racial nos EUA, possibilita uma comparação, para dizer que “os vampiros simbolizam invasores e opressores que se apropriam de territórios, memórias e culturas para perpetuar seus privilégios”.
E não só: “essa metáfora se estende ao avanço do agronegócio sobre terras indígenas, à destruição ambiental e às políticas que garantem o controle das elites enquanto condenam os pobres à invisibilidade”.
Neste primeiro momento, o redator do Brasil 247 faz menção à perpetuação dos privilégios de uma determinada camada racial, no caso, os brancos. É o que se chamou, em algum lugar, de “privilégios da branquitude”.
Essa ideia é uma importação, um enlatado, norte-americano. Ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil se misturou bastante, o que foi positivo, permitindo a integração nacional, sendo difícil falar de separação racial como política de luta.
Curiosa, também, a falta da denúncia do capitalismo como sistema responsável pela opressão do povo. Ao tratar a questão da opressão por meio das identidades (negros, índios, mulheres, etc.) a luta contra o capitalismo, de fato, desaparece, e o que surge é a “luta” por um lugar ao sol no meio da miséria. É isso que quer dizer “visibilidade”, ou seja, alpinismo social.
A chamada destruição ambiental também é uma política tipicamente imperialista, que, em resumo, visa impedir que os países atrasados se desenvolvam. Não quer dizer mais nada. Não tem nenhuma preocupação ambiental, de fato.
“Assim como no filme, uma figura emblemática dos tempos atuais atua nos trios elétricos, distorcendo letras de músicas (como o claro exemplo da cantora Claudia Leite) e esvaziando o sentido ancestral de manifestações populares. A apropriação cultural não se limita à absorção; ela redefine significados e transforma celebrações em espetáculos dominados pela lógica do mercado, esvaziando qualquer conexão ancestral”.
Neste ponto reside a reciclagem de um termo já um pouco em desuso, que é a tal apropriação cultural, como se a cultura fosse propriedade de um grupo ou de alguém. O negro não pode se apropriar da cultura do branco e vice versa. Por esse raciocínio o Brasil sequer existiria, nem o samba, nem o futebol, praticamente nada da cultura brasileira existiria.
A ideologia apresentada pelo autor é aquela que busca alterar a situação do negro por meio da mudança da subjetividade, ou seja, de como se expressar. Se o negro está passando fome ou não, pouco importa. Importa como se expressar e, mais importante, quem pode se expressar.
Determinado trecho do filme “encontra paralelo na atuação das igrejas neopentecostais nas favelas e periferias, justamente onde vive a população mais carente e desassistida. Essas instituições frequentemente demonizam rituais ancestrais — como os do candomblé, da umbanda e das culturas dos povos originários — mesmo enquanto incorporam práticas dessas tradições em seus próprios cultos”.
Aqui reside outro aspecto da ideologia identitária, a repressiva. As religiões ou igrejas que rejeitam alguma prática ou religião tida como africana deveriam ser penalizadas. É isso que está dito no trecho do texto acima.
O delírio identitário chega a este ponto: “afinal, quem nunca viu vídeos de manifestações de incorporação da ‘gira’ — característica dos cultos afro — dentro de igrejas neopentecostais? Essa apropriação simbólica não apenas dilui o significado das tradições ancestrais, mas também reforça a narrativa hegemônica que busca deslegitimar essas práticas”.
Ou seja, essas religiões deveriam ser punidas por conta da apropriação simbólica (sabe-se lá o que isso quer dizer). Elas estão promovendo um “apagamento cultural” que serviria para “a perpetuação de estruturas de poder”.
Ou seja, as estruturas de poder tem como causa as igrejas evangélicas. Segundo o redator do texto, a igreja católica, por exemplo, está livre da apropriação cultural e da perpetuação das estruturas de poder.
“Certas igrejas neopentecostais utilizam a fé para esvaziar tradições e impor uma narrativa hegemônica. Incorporam elementos das religiões afro-brasileiras para, em seguida, condená-los, garantindo que a estrutura de poder permaneça intacta. Esse processo de apropriação e demonização não busca integração, mas subjugação — uma estratégia para deslegitimar o que não pode ser diretamente eliminado”.
Toda religião utiliza a fé para algum objetivo dentro do regime. O texto se volta contra as evangélicas por ser frequentada, majoritariamente, por pessoas pobres. E este, na realidade, é o problema. Os ricos, suas religiões, e o próprio capitalismo não estão em discussão.
“Para combater os vampiros, é necessário desmantelar essa lógica e reivindicar a verdade histórica”, diz o autor. Até hoje o que se busca com a “verdade histórica” é apagar a história do Brasil e “desmantelar a lógica” é criar mais leis e crimes.
“A luta não se limita ao enfrentamento direto contra os opressores, mas exige um esforço coletivo para desconstruir narrativas que perpetuam a exploração”, defende o autor. A desconstrução de narrativa é um esforço psicológico, quase mediúnico para inventar, no pensamento, uma outra realidade na qual o negro não faz parte do rodapé da sociedade.
“A resistência, como evidencia Pecadores, passa inarredavelmente pela educação, pela preservação e recuperação das memórias, pela valorização das vozes silenciadas e pelo fortalecimento da identidade dos historicamente oprimidos, defende Rios”. Obviamente o redator se candidata, automaticamente, a realizar esse processo educacional. O texto, na verdade, é a apresentação de um currículo, não tem nada a ver com combate ao racismo.
De acordo com o autor, para enfrentar o racismo “é essencial fortalecer a educação como ferramenta de conscientização e transformação social, promovendo o respeito à diversidade e a inclusão como pilares fundamentais da humanização das relações”.
Ou seja, toda balela identitária é para ter um educador bem pago capaz de contar a “verdadeira história” para as crianças e adolescentes. Todo o problema seria educacional, para alguém com quadro e giz, diga e repita mil vezes: “você não pode usar turbante”, “você não pode usar black power”, “você não pode imitar a ‘gira’”, etc.
É por conta dessa política identitária que o movimento negro praticamente desapareceu. A reivindicação de fim da Polícia Militar, o armamento do povo, algo muito mais importante que a ‘gira’, foi abandonada. A luta por emprego, saúde e moradia também foram abandonados. Acabar com o capitalismo, então, está fora de questão, afinal, quem irá remunerar os educadores identitários que vão contar a “verdadeira história?”.