Investigação: Major israelense responsável por massacre de paramédicos em Gaza aparece como mercenário no Congo três dias após sua dispensa
Caso expõe atuação de mercenários israelenses no continente africano
Por Younis Al-Tirawi-Jerusalém*, no site da Fepal
Há apenas um mês, em um dos crimes mais sangrentos contra a ação humanitária em décadas, um comandante militar israelense perpetrou um massacre horrível na Faixa de Gaza, matando quinze trabalhadores humanitários.
Este comandante, identificado pela Comissão Pal, é o major Nikolai (Niko) Ashurov, um cidadão russo que serviu como subcomandante do batalhão de reconhecimento da Brigada Golani.
Numa trágica ironia, apenas três dias após sua dispensa do exército, Ashurov partiu para o Congo para trabalhar como mercenário para uma empresa de segurança privada.
Os detalhes do crime remontam à madrugada de 23 de março de 2025, quando uma ambulância do Crescente Vermelho Palestino estava a caminho para resgatar vítimas de um bombardeio israelense anterior no bairro de Hashashin, em Rafah.
Ao passar pela área de Barakasat, a oeste da cidade, soldados da Unidade de Reconhecimento Golani armaram uma emboscada mortal, abrindo fogo pesado contra as ambulâncias, matando dois paramédicos e prendendo um terceiro.
Posteriormente, um comboio de ambulâncias e veículos da defesa civil que se dirigia ao mesmo local teve o mesmo destino. Oito membros do Crescente Vermelho e cinco membros da defesa civil foram mortos, enquanto um membro da defesa civil foi preso e seu paradeiro permanece desconhecido.
Pouco tempo depois, um funcionário da ONU que chegou ao local após ouvir tiros enquanto tentava prestar assistência foi executado.
O massacre não foi improvisado. Um projeto de lei revisado pela Al-Quds, preparado por especialistas jurídicos da Comissão Pal, sediada em Nova York, estabeleceu que o ataque foi realizado sob as ordens diretas de Nikolai Ashurov, que comandava a força em terra.
As evidências compiladas pelo projeto incluíam registros militares, atividades em mídias sociais e múltiplas interações com conhecidos e soldados ligados ao oficial, tudo isso provando que Ashurov ordenou que seus soldados abrissem fogo indiscriminadamente.
Declarações de líderes militares israelenses nos dias que antecederam o massacre revelaram a mentalidade que levou a esse crime.
Em uma gravação em vídeo, o comandante do batalhão, tenente-coronel David Cohen, é visto dando ordens aos seus soldados antes de entrarem em Rafah, dizendo: “Todos que encontrarmos são inimigos. Se virem alguém, matem-no imediatamente. Não hesitem.”
Essa doutrina de extermínio em massa também foi confirmada pelo coronel Tal Elkobi, comandante da 14ª Brigada, sob a qual o batalhão operava, quando afirmou à imprensa hebraica que eles “fazem chover fogo pesado sobre a área antes de cada ataque, para que apenas aqueles que sobrevivem sejam mortos”.
Comentando essas declarações, o professor Luigi Danieli, professor de direito dos conflitos armados na Universidade de Nottingham, na Grã-Bretanha, descreveu o que está acontecendo ao jornal Al-Quds como “um colapso completo do princípio de distinção entre civis e combatentes”, afirmando que “todo palestino em Gaza se tornou um alvo legítimo para ser morto por decisão de um comandante de campo”.
Fontes israelenses revelaram que, um dia após a Comissão PAL revelar a identidade do oficial, o tenente-coronel Cohen enviou uma mensagem interna às suas tropas, enfatizando que a operação “não foi um fracasso moral, muito pelo contrário”.
Cohen afirmou que “Niko”, ou seja, Nikolai Ashurov, era o subcomandante do batalhão durante a operação, elogiando-o como um “oficial excepcional e íntegro” e enfatizando que “a liderança da unidade apoia firmemente as ações de todos os combatentes que participaram da missão”.
O professor Danieli acredita que as declarações do comandante do batalhão israelense não são um incidente isolado, mas sim um reflexo claro de “criminalidade sistemática” e “desumanização completa”.
Em sua explicação, ele observou que essa desumanização não se limita ao comportamento de combate, mas também se estende à maneira como esses comandantes reinterpretam as leis da guerra para justificar seus crimes.
“Esses combatentes estão convencidos de que matar civis palestinos — incluindo crianças — não é apenas um ato legítimo e moral, mas também é visto como um ato de heroísmo”, disse Danieli.
Ele acrescentou que a declaração do comandante, “Não há falha moral, muito pelo contrário”, resume claramente essa abordagem.
Danieli continua: “Os oficiais israelenses se sentem no direito de ignorar quaisquer restrições legais, acreditando que alguma moralidade superior ou privilégio especial justifica suas ações. Esta é a verdade fundamental: uma ilusão de genocídio. Uma ilusão possibilitada por anos de encobrimento no discurso ocidental, em que conceitos como ‘escudos humanos’ e ‘danos colaterais’ foram infinitamente manipulados para obscurecer a realidade clara e rotineira do massacre, realizado de forma indiscriminada e aberta — mesmo quando a intenção não é o extermínio direto, a certeza quase absoluta do resultado equivale legalmente à intenção criminosa de cometer genocídio, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Penal Internacional”.
De acordo com uma investigação interna das FDI [Forças de Defesa de Israel] analisada pelo Haaretz, o comandante responsável pelo planejamento do ataque foi o vice-chefe comandante de esquadrão, cargo ocupado por Ashurov na época.
Embora a própria investigação das FDI não tenha encontrado nenhuma atividade suspeita na área, Ashurov ordenou que as ambulâncias fossem alvejadas assim que passassem.
No primeiro ataque, uma ambulância palestina foi alvejada, matando dois paramédicos e capturando um sobrevivente.
No segundo ataque, quando o comboio de socorro se aproximava, Ashurov ordenou que suas forças disparassem uma nova saraivada de balas, matando mais 12 pessoas, algumas das quais foram executadas à queima-roupa, segundo as investigações.
Isso foi confirmado pela testemunha ocular, Dr. Saeed al-Bardawil, que foi detido com a força e testemunhou o crime em primeira mão. O próprio Ashurov abriu fogo contra um veículo da ONU, matando Kamal Shahtout, o oficial de segurança de campo da ONU em Rafah.
Nikolai Ashurov não é apenas um soldado comum. Ele nasceu na Rússia e imigrou para Israel ainda criança, estabelecendo-se com sua família na cidade de Sderot.
Durante o serviço militar, ocupou vários cargos de comando na Brigada Golani, comandando pelotões e companhias na unidade especial de reconhecimento.
Pouco antes de sua dispensa, participou de uma missão militar ao Marrocos como parte do exercício “Leão Africano”, organizado pelo Comando Africano dos EUA.
Na tentativa de confirmar a identidade de Nikolai Ashurov, focamos em um detalhe marcante destacado por Hallel Biton-Rozin, correspondente militar do Canal 14 de Israel.
Em sua reportagem, ela falou sobre “N”. Ela o descreveu como “um dos heróis de Israel”, afirmando que, após sua dispensa do serviço militar, ele se dedicou a negócios na África.
No entanto, o ferimento do subcomandante do batalhão exigiu seu retorno urgente ao exército, onde ele “não hesitou um momento sequer; deixou tudo e retornou”, disse ela.
Mas falar em “negócios na África” não era tão inocente quanto as reportagens sugeriam.
Desde o início, desconfiamos: informações indicavam que vários soldados israelenses — amigos em comum do oficial Nikolai Ashurov — atuaram como mercenários na República Democrática do Congo em 2023.
Isso levantou questões sobre o possível envolvimento de Ashurov nessas atividades. Inicialmente, não tínhamos evidências diretas que ligassem Ashurov a quaisquer operações na África, além de suas conexões sociais.
No entanto, a virada ocorreu apenas três dias após o término do serviço militar: um de seus amigos mais próximos, Moshe Hasid — ele próprio alvo de nossa investigação — publicou um anúncio de recrutamento explícito em sua página pessoal do Facebook para “soldados de combate para treinar exércitos africanos”, prometendo altos salários. Foi então que a história começou a se desenrolar.
Moshe Hasid não é apenas um amigo casual de Nikolai Ashurov; eles têm um relacionamento de longa data que remonta a 2021, com Hasid já tendo expressado publicamente seu apoio a ele, adicionando uma dimensão pessoal e profissional à colaboração entre eles.
Entramos em contato com Hasid se passando por um recrutador interessado na vaga. A resposta foi rápida: “Olá, irmão, fale com ele”, junto com um número de telefone e uma foto do seu perfil do WhatsApp — que, para nossa surpresa, era o do próprio Nikolai Ashurov, o autor do massacre de Rafah.
Em uma troca de mensagens pelo WhatsApp, Ashurov confirmou que estava trabalhando em um projeto de segurança na República Democrática do Congo e que eles estavam se preparando para lançá-lo no início de julho.
O projeto está sendo executado sob o nome Fortress, uma empresa israelense especializada em segurança e treinamento militar.
“A empresa não tem um site”, explicou Ashurov em suas mensagens, acrescentando: “Não é assim que uma empresa funciona neste mundo”. Ele não estava disposto a revelar muito por escrito e pediu para ter uma ligação comigo para explicar os detalhes.
Ligação com o açougueiro
E foi o que fizemos. Fiz a ligação e Ashurov falou abertamente sobre a natureza do seu trabalho. Ele revelou que é um dos três gerentes da Fortress, uma empresa que supervisiona o treinamento de forças especiais e batalhões regulares no Congo.
Ele indicou que o comandante da companhia é Nir Yatom, ex-oficial da unidade de forças especiais de Yatom e filho do ex-chefe e general do Mossad, Danny Yatom.
A companhia ofereceu um salário mensal de 27.000 shekels israelenses, e Ashurov confirmou que estaria no Congo comigo para supervisionar diretamente as operações.
Os projetos incluem o chamado “Projeto Comando” e o “Projeto Panzer”, que fazem parte de um programa de treinamento de forças congolesas para combater a insurgência M-23.
Durante a investigação, buscamos que Nikolai Ashurov confessasse sua responsabilidade pelo massacre ocorrido enquanto ele comandava a força em Rafah.
Durante a conversa, conseguimos extrair essa confissão. Quando ele percebeu que tínhamos informações sobre seu papel, perguntou surpreso: “Como vocês sabiam que era eu?”
Depois de lhe apresentarmos uma justificativa convincente, ele fez uma confissão decisiva:
“Está tudo acabado. Tudo é para o bem. Irmão, o exército não é minha carreira — só voltei porque me pediram. Trabalho com segurança na África, aqui e ali. Tudo ficará bem.”
Essas palavras não eram apenas uma justificativa pessoal; elas abriam uma janela para uma rede mais ampla de atividades de segurança israelenses na África.
De acordo com uma reportagem do Israel Hayom, a Fortress – International Missions Ltd., da qual Ashurov é confirmado como diretor, é uma das mais importantes empresas de segurança israelenses atualmente em atividade no continente.
O ex-chefe do Mossad comentou ao jornal: “Na minha opinião, Nir não vai querer falar com você, porque esse tipo de atividade prefere ficar longe dos holofotes.”
A presença de especialistas militares israelenses na África não é novidade, mas seu escopo e intensidade atingiram níveis sem precedentes nos últimos anos.
De acordo com a plataforma Africa Report, empresas israelenses desempenharam um papel fundamental no treinamento das forças armadas congolesas para enfrentar a rebelião armada M-23.
O presidente Felix Tshisekedi, que assumiu o cargo em 2019, aprofundou essa tendência, utilizando empresas privadas israelenses não apenas para garantir o acesso de figuras importantes, mas também para treinar a Guarda Republicana — consistente com a descrição de Ashurov do projeto de “comando” sobre o qual ele falou durante a conversa.
Esse aumento no uso de mercenários e especialistas militares israelenses teve um custo financeiro elevado, com relatos indicando que centenas de milhões de dólares foram desviados do tesouro público para financiar esses contratos secretos.
A preocupação não passou despercebida; levou as autoridades financeiras congolesas, representadas pela Unidade de Investigação Financeira (CENAREF), a abrir uma investigação oficial no ano passado sobre a escala e o impacto dessas atividades na economia nacional.
Nikolai Ashurov foi apenas um elo exposto em um sistema integrado onde os crimes de guerra israelenses em Gaza se cruzam com projetos mercenários e hegemonia de segurança no coração da África.
Das ruas devastadas de Rafah às florestas tropicais do Congo, assassinos circulam impunemente, carregando consigo uma cultura de impunidade, disfarçada por fachadas corporativas privadas e apoiada por estruturas políticas e militares transnacionais.
Enquanto o mundo continua a ignorar os massacres cometidos contra civis palestinos, as sementes da catástrofe iminente estão sendo semeadas em outras partes do mundo esquecido, onde os mesmos padrões de violência, corrupção e abuso se repetem.
O caso de Nikolai Ashurov não é uma exceção — é a regra. A menos que esse vergonhoso silêncio internacional seja quebrado, o “massacre de Rafah” continuará a se repetir, sob diferentes nomes e títulos, mas com a mesma impunidade.
*Originalmente publicado no jornal Al Quds em 30 de abril de 2025.
*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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