Com a ofensiva do imperialismo contra a liberdade de expressão, a cada dois ou três dias surge um idiota — exercendo seu direito de publicar coisas idiotas na internet — dizendo que a rede mundial de computadores criou a mentira, o crime e tudo que há de mal. No dia 30 de abril, foi a vez do jornalista (?) Paulo Henrique Arantes, autor do artigo O vácuo legal das redes sociais chega a matar, publicado pelo Brasil 247.

“Não se pode negar a mídia social como palco revelador das faces verdadeiras: personalidades, crenças e crendices, ódios e amores antes recolhidos são catapultados do teclado para o mundo, satisfazendo aquele desejo de boa parcela da humanidade de se exibir. Contudo, essa liberdade de expressão, absoluta nas redes, não exime ninguém de crimes como calúnia, difamação, insulto, escárnio por motivo religioso, favorecimento da prostituição, ato ou escrito obsceno, incitação do crime, apologia ao crime, falsa identidade, pedofilia, preconceito, discriminação ou revelação de segredo profissional, todos descritos no Código Penal.”

Calúnia, difamação, insulto e escárnio, apologia ao crime e preconceito são crimes inconstitucionais. Ainda que tipificados pelo Código Penal, eles se chocam com o artigo 5º da Constituição Federal, que diz ser livre a manifestação do pensamento. Não é possível assegurar isso se uma fala pode ser considerada “caluniosa”. Ao contrário da pedofilia, trata-se de um crime de opinião, um crime criado para regular aquilo que é dito pelo indivíduo na sociedade. Em um regime verdadeiramente democrático, tais “crimes” sequer existiriam.

Comecemos pelo óbvio. Liberdade de expressão é liberdade de expressão, pedofilia é pedofilia. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 6º, que todos têm direito à educação, à moradia, ao transporte, entre outras coisas. Uma vez que a educação é um direito, um adolescente pode aproveitar o espaço da escola para traficar drogas. Já que a moradia é um direito, alguém pode usar a própria moradia para assassinar uma pessoa. Como o transporte é um direito, um homem pode pegar um ônibus para se deslocar até um beco onde estuprará uma mulher. Mas ninguém em sã consciência dirá que em nome do combate às drogas, ao homicídio e ao estupro, é preciso limitar o direito à educação, à moradia e ao transporte.

O mesmo vale para a liberdade de expressão. Se existe uma infinidade de crimes comuns, isto em nada deveria afetar a existência da liberdade de expressão como um direito democrático.

Se a Internet é utilizada como meio para que eles sejam cometidos, eles nada dizem respeito à Internet, mas sim às contradições reais da sociedade. A criminalidade existe e não para de crescer porque as contradições são cada vez maiores. O Brasil é um País com mais de 50 milhões de miseráveis, que sobrevivem do auxílio estatal. O salário mínimo, por sua vez, não corresponde a um quarto daquilo que é necessário para uma vida digna. Nessas condições, haverá crime.

A última preocupação de alguém de esquerda deveria ser com a repressão ao crime. A única preocupação legítima é com as causas sociais do crime. O crime, afinal de contas, é a consequência inevitável da maldade daqueles que comandam o Estado. Quem semeia vento, colhe tempestade.

O que é inaceitável é que este mesmo Estado criminoso que condena sua população à fome queira, em nome do combate à criminalidade que ele mesmo criou, retirar os poucos direitos democráticos que restam. Este sim é um crime muito mais grave, uma vez que abre o caminho para a ação não de indivíduos isolados “criminosos”, mas sim de todo um aparato armado para agir contra os indivíduos.

Se o Estado quer procurar alguém que roubou um celular na rua, que o faça. Mas não será legítimo fazê-lo esbofeteando todos os jovens negros que encontrar pela frente, perguntando se viram fulano de tal. Se a polícia tem um mandado para realizar buscas na casa de alguém, que o faça. Mas não será legítimo dar um pontapé na porta da casa de alguém e sair mexendo em seus objetos.

O mesmo vale para a Internet. Não é porque o Estado se preocupa com a “falsa identidade” — a última coisa com a qual um operário de barriga vazia está preocupado no momento — que é legítimo sair vigiando as pessoas. Mas quando Arantes mistura liberdade de expressão e esses crimes comuns, é isso o que quer dizer. O que ele quer dizer é que em nome das preocupações repressivas do Estado, a liberdade de expressão e a privacidade devem ser esmagados.

O autor, no entanto, vai além.

“Mas a amplitude do alcance a que chegaram as redes sociais obriga a Justiça e ir além, muito além disso. O Legislativo tem o dever de aprovar uma norma específica que puna a disseminação de fake news, arma decisiva a favorecer 10 entre 10 tiranetes no mundo. Fiquemos em dois: Trump e Bolsonaro não existiriam politicamente sem o uso diuturno e profissionalizado de fake news em redes sociais.”

A norma para punir a tal “disseminação de fake news” é a ideologia fascistoide de Arantes em forma de lei. Afinal, além de inventar o crime de “mentir”, a lei é tão subjetiva que abre todo tipo de brecha para que o Estado intervenha como bem entender. Afinal, até hoje ninguém sabe o que é “fake news”, um termo de origem anglo-saxônica, que sequer poderia aparecer em uma lei brasileira. É um termo tão genérico que serve de guarda-chuva para outros crimes de opinião, como “homofobia”, “antissemitismo” etc. E é também um termo tão obscuro que é utilizado para justificar ações extraordinárias, como a cassação de mandatos.

O mais infantil, no entanto, é a consideração sobre Jair Bolsonaro e Donald Trump. Afinal, Adolf Hitler e Benito Mussolini, que eram fascistas de verdade e causaram um mal à humanidade com o qual Bolsonaro e Trump sequer são capazes de sonhar, não apenas “existiram”, como governaram durante vários anos, mesmo sem a existência das redes sociais?

O autor segue, então, insultando a inteligência de seus leitores:

“O problema, contudo, vai muito além da política. As fake news e outros crimes de internet, como a instigação a atitudes aberrantes e mesmo inacreditáveis, ceifam vidas. A destruição de reputações mata. Pessoas chegam a se suicidar por causa do alcance de crimes contra a honra em rede social. Em alguns casos, condena-se à morte. Assim aconteceu com a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, residente no Guarujá. Em maio de 2014, uma foto dela foi postada numa mídia social, junto com a acusação de sequestro de crianças para rituais de magia negra. Informação mentirosa, boato surgido sabe-se lá por que motivo. Fabiane foi espancada até a morte por moradores do bairro em que morava, sem jamais ter feito nada parecido com magia negra, muito menos usando crianças.”

Se uma mulher foi espancada até a morte, só um idiota acreditaria que isto teria sido o resultado de uma mentira. Afinal, é como se os seres humanos não tivessem mais nada para fazer em suas vidas que se preocupar com quem mente e quem fala a verdade.

Fato é que há milhares de anos, as mentiras são utilizadas para manipular as emoções das pessoas. Diz a Bíblia, por exemplo, que Jesus teria sido crucificado por causa de uma mentira, que se espalhou sem a ajuda de Mark Zuckerberg. Obviamente, o problema não era a mentira em si, mas sim os interesses por trás dela. Da mesma forma, as mentiras que a rede Globo veiculou pela televisão, e não por redes sociais, durante o golpe de 2016, serviram de cobertura para a ação criminosa do imperialismo.

No final de sua argumentação, Arantes nos brinda com uma verdadeira pérola:

“O Direito só age naquilo que é exteriorizado, e nunca sobre o que está dentro do pensamento. Qualquer ser humano, internamente, dentro de sua cabeça, já cometeu ilícitos, preconceitos, mas isso fica restrito à nossa esfera de reflexão. Na internet, em vez de as pessoas pensarem, elas simplesmente se manifestam. E aí o Direito tem que ser aplicado.”

É óbvio que o Direito só age naquilo que é exteriorizado. Ao menos, é assim que deveria, uma vez que no Brasil, onde o Estado de Direito está sendo destruído, um homem teve sua casa invadida pela Polícia Federal (PF) por que a instituição alegou que ele teria “predisposição do investigado à prática de atos violentos” — isto é, porque a PF, aparentemente, teve acesso aos pensamentos do investigado.

Mas, como o Direito só age naquilo que é exteriorizado, também é óbvio que a liberdade de expressão diz respeito àquilo que é exteriorizado, não aquilo que é apenas pensado. Se não fosse assim, não seria necessário criar uma lei para a liberdade de expressão. Afinal, o que está dentro da cabeça de alguém, lá está e ponto final.

Não é à toa que anteriormente a liberdade de expressão era conhecida como liberdade de consciência. Afinal, ambas são a mesma coisa. Quem é livre para pensar, o expressa, e vice-versa. Antes da Internet, quem discursava a favor do nazismo, pensava a favor do nazismo, a não ser que dissimulasse as suas posições. A Internet não mudou isso em nada. No entanto, o golpe do autor, de dizer que expressar não é o mesmo que pensar, mostra até onde ele está disposto para defender a repressão estatal: até os tempos mais bárbaros, anteriores à existência de direitos democráticos.

Para terminar, apresentamos ao leitor a grande inspiração de Paulo Henrique Arantes, conforme ele mesmo apresenta no início do texto:

“Ao receber o título de Doutor Honoris Causa em Comunicação e Cultura na Universidade de Turim, em 11 de junho de 2015, o escritor e filósofo Umberto Eco referiu-se aos usuários das mídias sociais como ‘uma legião de imbecis, que antes falavam apenas no bar, depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade’. O consagrado autor de ‘O Nome da Rosa’ foi além: ‘Normalmente, eles, os imbecis, eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra que um Prêmio Nobel’. Não satisfeito, acrescentou: ‘O drama da internet é que ela promoveu o idiota a portador da verdade’.”

O mundo sempre teve imbecis, existisse a Internet ou não. A diferença é que, com a Internet, todas as pessoas, imbecis ou não, passaram a ter o direito de se comunicar com o mundo inteiro. Uma publicação feita na Indonésia pode ser vista segundos depois no Canadá. Com o desenvolvimento da inteligência artificial, nem mesmo o idioma se torna uma barreira. É uma revolução avassaladora na forma do homem se comunicar, algo que servirá para conduzir a humanidade a uma nova etapa de progresso extraordinário.

O próprio Paulo Henrique Arantes é um grande beneficiário da Internet. Não fosse ele, sua diarreia reacionária certamente não seria publicada em lugar nenhum. Se fosse publicada, certamente seria publicada em um jornal dos grandes capitalistas, que ficariam satisfeitos em ver um idiota defendendo os seus interesses repressivos. Um trabalhador, no entanto, jamais teria esse espaço.

O próprio Umberto Eco também se beneficiou e muito da Internet, que ajudou a difundir tanto as suas obras, como as suas palestras, como o filme baseado em sua obra.

Tudo fica ainda pior quando Eco fala do Prêmio Nobel, uma premiação que o mundo inteiro sabe que serve apenas para estimular o capachismo perante o imperialismo. Se faltassem provas, bastava lembrar que um dos homens a ganhar o Prêmio Nobel da Paz foi Barack Obama, que bombardeou a Somália e a Síria. Sim, Eco, um cidadão comum — ou um idiota, como chama — deve ter o mesmo direito à palavra que um puxa-saco profissional. Afinal, o monopólio da “verdade” só serviu, durante toda a humanidade, para propagar as ideias mais reacionárias possíveis.

O desprezo de Eco pela tecnologia, ainda que ela tenha rendido bastante prestígio e provavelmente bastante dinheiro, vem apenas do fato de que ele conseguiu se projetar não necessariamente por sua qualidade, mas porque foi bem aceito no mercado editorial.

Na Internet, as coisas não são assim. Não fosse a imensa barreira imposta pela CIA às plataformas, os vídeos em maior circulação do mundo hoje seriam aqueles que denunciam o genocídio na Palestina. Já na época da qual Eco sente saudades, as únicas imagens que circulariam seriam aquelas divulgadas pela rede Globo. Isto é, de um tempo em que para ser ouvido, era preciso puxar o saco de alguém. Arantes, como puxa saco de Eco, se revela, portanto, como um puxa-saco de um puxa-saco.

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Last Update: 03/05/2025