“ Existe uma energia focada em colonizar – com diversos métodos – o corpo feminino até o último cantinho escuro e úmido” – Liv Strömquist, p. 06

O artigo anterior dedicou espaço para estabelecer as relações intrínsecas entre opressão e exploração econômica. Agora é a vez de comentar mais sobre a obra de Liv, cujo foco é analisar como o corpo da mulher – especificamente a genitália – é historicamente (des)construída para conter a sexualidade nos parâmetros do binarismo masculino/feminino e garantir a subordinação e apagamento do desejo sexual feminino. A esse respeito, sabemos que diversas correntes psicanalíticas pautam há décadas o quanto a repressão da libido tem profundos desdobramentos na psique e no processo de baixa autoestima ao longo da vida o que reforça, por sua vez, a opressão.

Binarismo e a ideia de vazio

Como comentado anteriormente, em meio a um boom de textos que tratam do tema, o trabalho de Liv inova ao trazer estudos sérios com toques de descontração e ironia. A autora apresenta na HQ variadas fontes de informações sobre o processo de fragmentação e mutilação do corpo feminino em diferentes contextos históricos. O que há em comum em todos os exemplos mencionados – um dos mais populares talvez seja o relato bíblico de Adão e Eva – é a persistente caracterização da genitália feminina a partir do corpo masculino. No longo e tortuoso processo de aprisionamento da mulher como garantia de direito de herança às propriedades privadas patriarcais, o principal órgão sexual feminino passou a ser delimitado como uma máquina reprodutora.

Mais recentemente (em termos de longa duração histórica) a ideia de espaço vazio a ser preenchido esteve na raiz do olhar “inovador” da chamada ciência moderna na segunda metade do século XIX. Definido a partir do que supostamente lhe faltaria – pois a completude e inteireza autocentrada seriam características somente masculinas – o corpo da mulher, o rebelde berço da humanidade, outrora endeusado por suas características tão complexas e vibrantes, passou a ser estudado para que sua domesticação ganhasse legitimidade científica. Nesse sentido, nem mesmo a então nascente psicanálise na virada do século XIX conseguiu fugir à regra da teoria do vazio – a tese de que a fonte de nossas frustrações estaria na ausência do falo masculino.

A normatização excludente e limitada do que é ser feminino tornou-se então parâmetro de saúde física e mental. Aceita até em círculos de intelectuais de esquerda, aparece em obras como “O Ser e o Nada” (1943) do filósofo existencialista Jean Paul Sartre – “o sexo feminino (…) é um chamado de ser, como são, aliás, todos os buracos; em si a mulher chama uma carne estranha que deve transformá-la em plenitude de ser por penetração e diluição.” (pág. 748)

Mas apesar de toda essa tentativa de catalogar e esvaziar de sentidos próprios os corpos, sempre as mulheres se rebelaram e não houve como escondê-la – ela, a majestosa vulva, fonte de dores de cabeça para os senhores letrados e das ciências mais avançadas. O que iriam fazer? Aonde agrupar, enquadrar? Ou quem sabe não seria melhor extirpá-la da face da terra? Em outras épocas já fizeram; por que não agora, com requintes científicos?

Genitália feminina: objeto invisível

Em sua vasta pesquisa, Strömquist seleciona verdadeiras pérolas sobre homens e coletivos ilustres que, segundo ela, “se preocuparam um pouco demais com aquilo que se costuma chamar de ‘genitália feminina’

Entre elas, aparece o nome de John Harvey Kellogg (1852-1943), nada mais nada menos do que o criador do famoso Sucrilhos Kellog’s. Médico, ele foi um fervoroso defensor da extirpação do clitóris que, segundo ele, ao ser estimulado poderia causar de câncer cervical à loucura total das mulheres. Qual a receita indicada? Ácido carbólico puro…

Em outro exemplo (este hilário e carregado de humor ácido), ela cita o desenho dos corpos de um homem e uma mulher, feito pela NASA e colocado numa espécie de mensagem de garrafa numa placa de aluminio contendo informações sobre a vida na Terra para possíveis alienígenas. Tal empreitada aconteceu em 1972 pela sonda espacial Pionner. O que temos ali? A mulher está sem nenhum sinal de órgão genital. Será que até alienígenas se incomodariam ao serem confrontados com uma vulva, a autora se pergunta.

Ao mesmo tempo em que parte significativa da genitália feminina deve ser invisibilizada sob a denominação genérica e errônea de vagina, há a superexposição heteronormativa que omite partes importantes desse órgão, independentes da questão reprodutiva.

Liv não poupa críticas à veiculação desse apagamento e desinformação contidos em muitos livros (inclusive atuais) de “educação sexual” e destaca que – pasmem! somente em 1998 Helen O’Connell, do Royal Melbourne Hospital descobriu a real anatomia do hoje chamado complexo clitoriano, parte da vulva com milhares de terminações nervosas e responsável pelo orgasmo feminino.

Profanas e sagradas

Em sua pesquisa (cujos dados não contemplam América e África) sobre os diferentes modos de percepção do corpo feminino ao longo da história, a autora constata o quanto a exposição da vulva está presente desde tempos longínquos. Das gravuras rupestres e pequenos totens há dezenas de milhares de anos, passando por culturas diversas, encontramos figuras e cultos vinculados à vulva. Aliás, na Europa Ocidental colocavam estátuas de mulheres nuas de pernas abertas como guardiãs das cidades e nas portas das casas. Outro exemplo na região são as “Sheela-na-gigs” na Irlanda e Inglaterra. Já as “Dilukai” da Micronésia são esculturas de madeira que, de pernas abertas e escancaradas, exibem uma grande vulva triangular e serviam de proteção nas casas contra maus espíritos. Na Índia, “Yoni” (vulva) é louvada como um lugar sagrado, um portal para os mistérios cósmicos.

Segundo ela, apesar de muitas lacunas e hipóteses, não há dúvida de que a vulva, assim como a sexualidade de conjunto, possuía um significado existencial mais amplo, ao contrário de sua constante demonização, principalmente a partir do domínio da cultura ocidental cristã.

Quer saber mais? Veja no próximo artigo.

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Last Update: 02/05/2025