Quando Donald Trump anunciou aos quatro ventos que tinha interesse em transformar o Canadá no 51º estado norte-americano, provavelmente não imaginava que estava dando ao Partido Liberal o fôlego de que os progressistas precisavam para uma virada histórica nas eleições, até então nas mãos do Partido Conservador. Na segunda-feira 28, mais de 7 milhões de canadenses – um número recorde de eleitores – deram mais uma resposta às ameaças do presidente dos EUA e às políticas tarifárias que ele vem adotando contra aquele que era, até o ano passado, seu mais próximo e leal aliado.
Em janeiro, eram os conservadores – liderados por Pierre Poilievre, conhecido como o “Trump canadense” – que apareciam à frente nas pesquisas, com mais de 25 pontos porcentuais de vantagem. No entanto, a pressão exercida pelo presidente norte-americano, somada à renúncia do então premier Justin Trudeau, em março, permitiu que os liberais virassem a disputa de cabeça para baixo e se tornassem, aos olhos dos eleitores, a melhor opção para lidar com Trump.
Após a confirmação da vitória, o primeiro-ministro eleito, Mark Carney, declarou que o Canadá “nunca” cederá a Washington. “Como venho alertando há meses, os EUA querem nossa terra, nossos recursos, nossa água, nosso país. Mas essas não são ameaças vazias. O presidente Trump está tentando nos destruir para que os EUA possam nos dominar. Isso nunca, jamais acontecerá”, discursou na terça-feira 29. Carney acrescentou que o choque da “traição americana” foi superado, mas não esquecido. “Temos de cuidar de nós mesmos. E, acima de tudo, temos de cuidar uns dos outros.”
Aos 60 anos, Mark Carney assume, pela primeira vez, um cargo político. Pai de filhos adultos, ele foi presidente do Banco do Canadá – equivalente ao Banco Central do Brasil –, dirigiu o Banco da Inglaterra e atuou na ONU à frente de iniciativas climáticas sustentáveis. Com um perfil mais acadêmico e corporativo do que seu antecessor, conseguiu conquistar os eleitores da geração Y e construiu sua imagem como um anti-Trump. Durante a campanha, prometeu dedicar-se à sua expertise financeira, com foco em melhorar a economia do país e proteger os canadenses das tarifas e das ameaças de anexação por parte dos EUA.
Ao reconhecer a derrota, Poilievre afirmou que o Partido Conservador trabalhará com Mark Carney para “defender os interesses do Canadá” e proteger a soberania do país. “Sempre colocaremos o Canadá em primeiro lugar ao enfrentarmos tarifas e outras ameaças irresponsáveis do presidente Trump.” O presidente Lula, assim como lideranças da China, do México e da União Europeia, apressaram-se em parabenizar Carney pela vitória. Até o fechamento desta edição, Donald Trump permanecia em silêncio – uma postura bem diferente da adotada no dia anterior.
Na segunda-feira 28, após desejar sorte aos canadenses em uma publicação na Truth Social, o republicano voltou a insistir na ideia de anexação territorial: “Os EUA não podem mais subsidiar o Canadá com as centenas de bilhões de dólares por ano que gastávamos no passado. Não faz sentido, a menos que o Canadá seja um estado (norte-americano)! Chega de linhas traçadas artificialmente há muitos anos. Vejam como esta massa de terra seria linda.” Em entrevista à revista The Atlantic, publicada no mesmo dia – na qual afirmou que “governava o país e o mundo” –, Trump admitiu saber que, até sua chegada em Washington, os conservadores no Canadá tinham 30 pontos de vantagem. “Então, eu era odiado por tantos canadenses que acabei colocando a eleição em uma situação difícil, certo?”
O ranço em relação ao líder dos EUA, por sinal, não parece estar presente apenas fora das fronteiras nacionais. O índice de aprovação de Trump continua em queda e, desta vez, está entre os mais baixos já registrados para um presidente recém-eleito em mais de 50 anos, segundo levantamento da CNN e da The Economist/YouGov. A pesquisa, também divulgada na segunda 28, mostrou que apenas 41% dos entrevistados aprovam a administração do republicano. De acordo com a Gallup, o único governo a registrar índices tão baixos nos primeiros cem dias foi o do próprio Trump, há oito anos, durante seu primeiro mandato.

Cabo eleitoral. O cerco do republicano ao país uniu os canadenses – Imagem: Daniel Torok/Casa Branca Oficial
Entre os muitos efeitos colaterais provocados em todo o mundo desde seu retorno à Casa Branca, Trump passou a despertar um extraordinário fervor patriótico entre os canadenses – que vêm se manifestando de diversas formas, especialmente por meio de boicotes. Nas prateleiras dos supermercados, produtos com o selo Made in America se acumulam.
Em março, o número de canadenses que fizeram viagens rodoviárias aos Estados Unidos despencou 32% em comparação com o mesmo mês do ano anterior. As viagens aéreas também caíram 13,5% no mesmo período. Segundo a Associação de Viagens dos EUA (USTA, na sigla em inglês), essas quedas podem representar mais de 6 bilhões de dólares em perdas para a economia norte-americana. E a expectativa é de que o boicote às viagens se intensifique com a aproximação da alta temporada de verão.
Não bastasse, até durante as competições de hóquei – o principal esporte praticado no Canadá – o hino nacional dos EUA passou a ser vaiado antes dos jogos entre times dos dois países. “Deixe-me dizer aos americanos: não estamos vaiando vocês, não estamos vaiando seus times, não estamos vaiando seus jogadores. Estamos vaiando uma política criada para nos prejudicar. E estamos insultados e com raiva, mas somos canadenses. O que significa que vamos nos defender, vamos lutar e vamos vencer”, declarou, em março, o então primeiro-ministro Justin Trudeau.
Mais tarde, foi a vez de o deputado Charlie Angus criar o que viria a se tornar um movimento de resistência em todo o país. “É hora de cotovelos para cima, senhoras e senhores! O Canadá nunca se dobrará. Nunca beijaremos o anel dos gângsteres!”, disse, em um inflamado discurso. O termo “cotovelos para cima” – tradução literal de “elbows up” – é uma expressão usada pelos jogadores de hóquei e significa, basicamente, preparar-se para lutar.
Antigo colega de Mark Carney na Universidade de Harvard e, posteriormente, em Oxford, nos anos 1980 e 1990, o deputado norte-americano Jim Himes, do Partido Democrata, não perdeu a oportunidade de ironizar o talento de seu presidente como cabo eleitoral às avessas. “Se naquela época eu tivesse dito a ele: ‘Mark, um dia Donald Trump será presidente dos Estados Unidos e, sozinho, fará de você primeiro-ministro do Canadá’, ele teria chamado a segurança do campus para me levar para casa.” •
Publicado na edição n° 1360 de CartaCapital, em 07 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Obrigado, Trump’