Conheça a pesquisa pioneira sobre os vasos comunicantes entre redações jornalísticas e a repressão ditatorial no pós 1964. Retomando o extenso estudo publicado em seu livro “Cães de guarda”, reconhecido pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade, Beatriz Kushnir demonstra como “além de não fazer frente ao regime e às suas formas violentas de ação, parte da imprensa também apoiou a barbárie”.
por Beatriz Kushnir
Desde fins da década de 1990, parte da historiografia brasileira já sublinhava que o equivocado processo de Anistia, promulgada em 1979, auxiliou a cunhar igualmente a errônea visão de que vivemos envoltos em uma tradição de valores democráticos. A partir das lutas pela Anistia, “liberta-se” a sociedade brasileira a repudiar a ditadura e, assim, demonstrar sua parcela progressista com profundas e autênticas origens na trajetória histórica do país. E há aqui ironia. Naquele momento plasmou-se a imagem de que a sociedade brasileira viveu a ditadura do pós-1964 como um hiato, um instante a ser expurgado.
Ícones de resistência são lembrados, afirmados, expostos e sublinhados maciçamente para ratificar a tradição democrática brasileira. Os inúmeros jornalistas perseguidos, demitidos, torturados e mortos sofreram estas horríveis barbáries enquanto atuavam como militantes das esquerdas, em ações armadas ou como simpatizantes. Assim, como pontuava lúcida e ferinamente Cláudio Abramo, “nas redações não há lugar para lideranças. Os donos dos jornais não sabem lidar com jornalistas influentes, que, muitas vezes, se chocam com as diretrizes do comando. O jornalista tem ali uma função, mas ‘ficou forte, eles eliminam’.”1
O cerne dessa reflexão inaugural é a atuação do Grupo Folha da Manhã, proprietário da Folha de S. Paulo e da Folha da Tarde, entre outros, no período. Em dezessete anos, entre 19/10/1967 e 7/5/1984, o país foi dos “anos de chumbo” ao processo das Diretas Já. Enquanto isso, a Folha da Tarde vivenciou uma redação tanto de esquerda engajada — até o assassinato de Marighella — como, a partir daí, de partidários e colaboradores do autoritarismo.
Durante uma década e meia sob o comando de policiais, o jornal adquiriu um apelido: o de “maior tiragem”, já que muitos dos jornalistas que ali trabalharam eram igualmente “tiras” e exerciam cargos na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. A partir desse perfil de funcionários, a Folha da Tarde, enquanto um braço operacional do Grupo Folha da Manhã, carrega a acusação de “legalizar” mortes decorrentes de tortura, se tornando conhecido como o Diário Oficial da Oban.
Esta é uma ponta para conjecturarmos o porquê de os carros do Grupo Folha da Manhã terem sido incendiados por militantes das esquerdas nos dias 21/9/1971 e 25/10/1971. A temática foi esmiuçada em meu trabalho desenvolvido entre 1996 e 2001, e publicado em 2004, nos 40 anos do Golpe, como o livro Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Minha análise sobre os carros incendiados foi reconhecida pelo Relatório da Comissão Nacional da Verdade. A ação era uma represália, já que o Grupo era acusado de ceder automóveis ao Doi-Codi, que com esse disfarce, montava emboscadas, prendendo ativistas.
Nesse sentido, trata-se de mapear uma experiência de colaboracionismo de uma parcela da imprensa com os órgãos de repressão no pós-AI-5. Ou seja, tem-se como mote a atuação de alguns setores das comunicações do país e suas estreitas e permissivas conexões com a ditadura civil-militar do pós-1964. Além de não fazer frente ao regime e às suas formas violentas de ação, parte da imprensa também apoiou a barbárie. Há diversas tonalidades de colaboração e todas demonstram como esses grupos se plasmaram à ditadura.
Escolheu-se conjeturar com o que, julgo, ser o mais forte nessas relações de cooperação, apreendendo o ato de colaboracionismo como tendo cores e tonalidades várias.2 Tanto podia ser exercido de maneira individual, como coletiva e, como vale salientar, este modo de agir não é exclusivo do jornal selecionado. Suas características peculiares, no entanto, tornaram-no um locus privilegiado desta análise.
A Folha da Tarde, do Grupo Folha da Manhã, foi velozmente mapeada anteriormente. Criado em 1/7/1949, com o slogan “o vespertino das multidões”, assim permaneceu até 31/12/1959. Retornou em 19/1/1967 e foi extinto em 21/3/1999. O intervalo de tempo que inquieta esta análise, todavia, é o que vai do seu ressurgimento até o dia 7/5/1984.3 Nesses dezessete anos, entre 1967 e 1984, o país foi dos “anos de chumbo” ao processo das “Diretas Já”; e a Folha da Tarde teve tanto uma redação de esquerda engajada, como de partidários do autoritarismo que reinava no Brasil.
Assim, nas páginas daquele jornal há desde denúncias sobre os tempos vividos como (e principalmente) o reflexo do seu aval às conjunturas do momento. Os homens e mulheres que lá trabalharam, seu corpo de jornalistas, formavam um grupo diverso e múltiplo. Viveram tanto as forças do arbítrio, nas prisões e mortes não só relatadas, mas também sentidas na própria pele, como muitos igualmente pactuaram com os agentes da repressão. Como se poderá notar, a trajetória da Folha da Tarde não apenas espelha as rupturas e mudanças no panorama brasileiro, como também os caminhos percorridos pelo Grupo Folha da Manhã para se adaptar aos percalços e à efervescência política daquele período, perdendo poucos anéis, mas jamais os dedos.
O início da década de 1960, portanto, foi um momento de grandes mudanças internas no Grupo. Por um lado, alterações de forma: três jornais são reunidos em um, que recebe o nome de Folha de S. Paulo. De outro lado, alteram-se estruturas, com a nova direção da empresa. Com a substituição de Nabantino Ramos por Otávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, em 1962, a linha editorial se tornou francamente anti-janguista. Como outros jornais, os do Grupo, além disso, apoiaram as mobilizações e os acontecimentos que culminaram na ação de 1º de abril de 1964.
Concomitantes ao alinhamento editorial ocorriam transformações em âmbito empresarial. A Folha de S. Paulo a partir de então buscou ampliar seu público, adquirindo uma frota própria e, ao conquistar o leitor do interior do estado, aumentou sua influência. Quanto às metamorfoses na forma e no conteúdo do jornal, o cargo de diretor de redação do Folhão foi ocupado por José Reis, homem do jornal desde 1948, e que esteve à frente da Folha até 1967.
Cláudio Abramo assumiu o Folhão em 1967 e esteve à sua frente quando, entre 1969 e 1972, o veículo viveria um momento de censura imposta pelo regime a toda a imprensa, e que não findou no início dos anos de 1970 para a totalidade da imprensa. O ano de 1967 foi o período inicial das transformações da Folha, quando o Grupo investiu em tecnologia, com a aquisição de máquinas offset, e no aumento da frota para acelerar a entrega de seus jornais. Essas modificações se iniciaram pelo jornal Cidade de Santos em 8/7/1967 e chegaram à Folha de S. Paulo em 1/1/1968. No meio do caminho, em 19/1/1967, relançou-se a Folha da Tarde, como o primeiro jornal paulistano a publicar fotos coloridas na primeira página.
Credita-se a esses primeiros anos do Grupo uma ampliação substancial do seu público leitor e a conformação do seu perfil empresarial. Assim é que, em 1965, o Grupo adquiriu o jornal Notícias Populares, fundado dois anos antes.4 E doze anos após a posse de Frias e Caldeira, a Folha de S. Paulo transformou-se no jornal mais lido no interior do estado de São Paulo, segundo o Ibope.
E a Folha da Tarde, que imagem deixou? É impossível refazer esse desenho nos prendendo somente ao espaço da redação. O corpo de redação da Folha da Tarde, de 1967 a 1984, é formado por dois grupos distintos: os de antes e os de depois do AI-5. A existência dessas duas castas se cruza intimamente com os acontecimentos políticos do momento. Além de reportar a realidade para as folhas impressas, muitos dos que lá trabalharam tiveram engajamento contra ou a favor da repressão.
De tal modo, compreender por que a Folha da Tarde renasceu em 1967 também é uma forma de adentrar nessa trama. As uniões e separações dos Frias com figuras como Cláudio Abramo e seus pares indicam os difíceis caminhos que unem idealismo e realidade no Brasil pós-1968, tendo como palco o prédio amarelo. Para ver e rever alguns desses embates, faz-se importante trazer à tona a trajetória desse periódico.
Por que renasce a Folha da Tarde?
A Folha da Tarde que renasceu naquele outubro de 1967 era um jornal completamente diferente do que existira entre 1949 e 1959. O projeto a queria moderna, colorida, impressa em offset. Nas suas páginas deveriam estar as questões nacionais do momento e, principalmente, a efervescência que transpirava pelas ruas do país. Quando o jornal foi para as bancas, o cenário político era de constante movimento e havia uma permanente ebulição. Dirigida primeiramente pelo jornalista carioca Jorge Miranda Jordão, egresso da Última Hora, contou nesse momento com “velhos jornalistas” que tinham pouco mais de trinta anos de idade, além de pessoas que começavam suas carreiras. Muitos deles, como Raimundo Pereira, Frei Betto, Paulo Sandroni, Chico Caruso, viriam a ter um papel de destaque em sua profissão nas décadas seguintes.
A linha editorial era de oposição ao governo, até quando este o permitiu; nesses primeiros tempos, o jornal caminhava ainda para encontrar seu perfil e definir bem seu público-alvo. Foram o desenrolar do panorama e o posicionamento pessoal dos jornalistas daquela redação que deram o tom do jornal. No fundo, portanto, ele se constituiu como um reflexo do momento vivido. Como refletiu Paulo Sandroni, “não creio que fosse um jornal de esquerda, mas ganhou esse caráter depois”.
Nas manchetes da Folha da Tarde de 1968 o tom é quase sempre político. Em abril, trazem as torturas sofridas durante oito dias, no Rio, por dois irmãos e cineastas durante a missa de sétimo dia do estudante Edson Luís, morto no mês de março em um conflito com a Polícia Militar no restaurante estudantil Calabouço. Em 2 de outubro, em letras garrafais, o jornal diz: “Conheça Vladimir, ele quer o poder”.
Fica claro o quanto a efervescência política ganhava espaço nas ruas e nas páginas dos periódicos. A maioria dos jornalistas tinha alguma militância, mesmo que apenas como simpatizante. Muitos dos jornalistas daquela redação ou eram ou tinham amigos engajados politicamente. No prédio da Alameda Barão de Limeira, a Folha da Tarde ainda noticiou, no dia 13 de dezembro, a libertação de José Dirceu e a transferência de outros estudantes presos no Congresso da UNE (realizado em Ibiúna, no interior São Paulo) para outras unidades militares e do DOPS em todo o país.
O mais drástico estava por vir. Carlos Penafiel, responsável pela diagramação do jornal, resumiu o que aconteceu ali horas depois, quando, à noite, o locutor da Agência Nacional, Alberto Cúri, tendo ao seu lado o ministro da Justiça, Gama e Silva, leu o Ato Institucional nº 5: “(…) o AI-5 mexeu na redação. Nossa primeira reação foi que, como jornal, estávamos mortos. Daí em diante a linha à esquerda do jornal era meio impossível. Sabíamos que o pouco de liberdade que poderíamos ter da censura oficial, [seria confrontada] com a censura interna (Frias, Caldeira e Cia.). Houve um desânimo geral e muitos saíram nessa ocasião. Só continuaram os que não tinham muita opção, afinal o AI-5 tinha mexido com toda a Imprensa. [Assim,] ou se partia para fazer jornais clandestinos ou se ficava onde estava.”5
A tempestade: o AI-5, o sonho acabou
Com a decretação do AI-5, muitos proprietários de empresas de jornal criam alternativas para se adaptarem aos “novos tempos”. Na mesma semana em que o regime autoritário endureceu, em vários órgãos de imprensa os jornalistas mais combativos foram demitidos. Jorge Miranda Jordão permaneceu à frente da Folha da Tarde por mais alguns meses e foi demitido do Grupo nos primeiros dias de maio de 1969. O dono do jornal, Octávio Frias de Oliveira, chamou-o à sua sala e disse: “não posso mais ficar com você”.
Alguns jornalistas da Folha da Tarde eram simpatizantes da militância armada de esquerda, abrigando reuniões em suas casas, hospedando pessoas ou participando da rede de apoio, como o próprio Miranda Jordão, que acabou sendo preso em agosto de 1969. Afora as demissões do jornal, a repressão pós-AI-5 os surpreendeu com máxima violência, com invasões de domicílio e prisões ou forçando-os à clandestinidade, como ocorreu com Paulo Sandroni. A “caça às bruxas” intensificou-se após o sequestro do embaixador norte-americano, em 4/9/1969, e o cerco a Carlos Marighella, morto em São Paulo, exatamente dois meses depois.
Nas alterações na direção do jornal, entre a saída de Miranda Jordão e a posse de Pimenta Neves, exerceu o cargo um prata da casa, “(…) que andava com uma capanga armada pela redação, e fomos todos demitidos. A linha do jornal tinha mudado completamente, a ponto de que quando fui demitido por motivos políticos, junto com 8 colegas, em agosto de 1969, de toda a antiga equipe não restava mais ninguém”.6
A partir de julho de 1969, com o fim da equipe de redação que havia sido formada desde outubro de 1967, o jornal, torna-se, nas palavras de Cláudio Abramo, sórdido. O papel desempenhado pelo Grupo Folha da Manhã durante os anos de 1970 recebe muitas críticas. Para Freire, Almada e Ponce, “(…) a imprensa, censurada aqui e ali, não oferecia resistência mais séria ao governo quando se tratava das organizações de esquerda revolucionária. E aqui distinguimos muito bem os jornalistas dos donos de jornal. É preciso que se diga, a bem da verdade, que muitos jornalistas arriscaram seus empregos e mesmo a vida, enviando notícias para o exterior e passando algumas informações apesar da censura. Jornais, como a Folha de S. Paulo, transformaram-se em porta-vozes do governo militar e mesmo cúmplices de algumas ações.”7
Denuncia-se o jornal e o Grupo Folha da Manhã por algo extremamente sério: terem sido entregues à repressão como órgãos de propaganda, enquanto papel, tinta e funcionários eram pagos pelo Grupo. Neste sentido, buscando traçar um perfil do periódico, encontrei muitos depoimentos que se auto atribuíam a criação da célebre frase que definiu a Folha da Tarde a partir de julho de 1969. O jornal era tido como “o de maior tiragem”, devido ao grande número de policiais que compunham sua redação no pós-AI-5. Muitos também a conheciam, por isso, como “a delegacia”.
Os policiais: Diário Oficial da Oban
O jornalista Antônio Aggio dirigiu o Cidade de Santos, publicação do mesmo Grupo Folha da Manhã, de julho de 1967 a junho de 1969. Declaradamente um repórter policial, com bom trânsito nas fontes de polícia, foi convocado para a Folha da Tarde porque “o jornal não vendia”. O recorde de vendas teria sido registrado em 3/1/1968, quando se comercializaram onze mil exemplares/dia com as imagens dos combates na rua Maria Antônia, enquanto a média era 2.5 mil exemplares por dia. Havia sido esta, aliás, a “explicação oficial” permanente para se substituir Miranda Jordão: a baixa venda do jornal e a falta de recursos para executar um similar competitivo com o Jornal da Tarde. De Santos, Aggio trouxe ainda Holey Antônio Destro e José Alberto Moraes Alves, o Blandy, e “tomou posse” do jornal a partir de 19/6/1969. O então jornalista Ítalo Tronca, remanescente da redação de Miranda Jordão, lembrou que da antiga equipe que sobreviveu ao AI-5, só permaneceu quem precisava do emprego. “Até que chegou o Aggio. Ele trazia para dentro da redação um estojo que parecia um violão. Não sabíamos o que era. Mas ele gostava de exibi-lo na sua sala: uma carabina turca. Nós não sabíamos de onde vinha essa gente [Aggio, Horley e Torres]. O Horley vinha armado de uma automática. Torres era relações públicas do IVº Comar e fazia um gênero amigo. Os outros dois eram acintosamente policiais.”8
Rememorando esta trajetória, o jornalista Adilson Laranjeira — que muito mais tarde, em meados da década de 1980, comandou a Folha da Tarde substituindo Aggio — conta que “talvez fosse conveniente, naqueles tempos, manter a Folha da Tarde“, como um jornal “de maior tiragem”, onde muitos jornalistas eram policiais, ou se tornaram policiais lá dentro. Além do próprio editor-chefe, o chefe de reportagem Carlos Dias Torres era investigador de polícia; o coronel da PM, na época major, Edson Corrêa, era repórter da Geral; o delegado Antônio Bim esteve por algum tempo no jornal; e o chefe da Internacional, Carlos Antônio Guimarães Sequeira tornou-se delegado, por concurso, em 1972.9
A proposta de Antônio Aggio, quando assumiu a Folha da Tarde, era realizar o oposto do que ocorrera no período dirigido por Miranda Jordão, intensificando a ênfase às narrativas policiais. Tem-se a impressão, ao consultar o periódico, que a gestão de Miranda foi percebida por Aggio como uma ilha. O novo editor construiu uma ponte sobre ela, unindo outra vez o jornal à sua suposta “gênese”, com exceção, é claro do reconhecimento e manutenção da tecnologia offset, o grande avanço de modernização gráfica da época.
Um exemplo que corrobora essa aparente necessidade de distanciar as redações de Miranda Jordão e de Aggio foi a cobertura dada à prisão de Frei Betto. Em nenhum momento a Folha da Tarde mencionou que o jornalista teria pertencido aos quadros do jornal. Nem Betto, nem nenhum dos outros militantes presos e que tinham trabalhado no jornal. No mesmo dia 11/11/1969, a Folha da Tarde, a Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo relataram a prisão do dominicano no Rio Grande do Sul. O Estadão foi o único a mencionar que Frei Betto era ex-chefe de reportagem da Folha da Tarde.
A pressão sobre os donos do jornal era muito grande e, além da presença policial na equipe de redação, da substituição do espaço do editorial — o lugar onde a equipe de redação opina sobre as questões do momento — por charges e da guinada à direita, o tabloide adotou a censura interna e a autocensura. Neste sentido, sublinha Boris Casoy, que foi editor-chefe da Folha de São Paulo, “por uma questão de sobrevivência, o Grupo Folha não tinha censor. Tinha decidido não enfrentar o regime. Fez autocensura.”10
Do mesmo modo, as manchetes da primeira página da Folha da Tarde, além de difundirem informes oficiais — que davam outra versão à verdade dos fatos —, também criavam um pacto com o cativo público leitor. O tom agressivo apregoava, aumentava as vendas:
- “Honras militares para a vítima de Marighella“, de 8/11/1969, sobre o enterro da investigadora Stela Borges Morato, baleada no cerco a Carlos Marighella;
- “Oban desmantela quadrilhas do terror“, de 28/1/1970, acerca dos mais de 32 militantes políticos presos;
- “Cônsul livre: começa a caça“, de 16/3/1970, sobre a trocada de presos políticos pelo cônsul japonês;
- “Prisão para os 14 terroristas da ALN“, de 1/4/1970, acerca do indiciamento de 143 “criminosos”, dos quais 14 já com prisão preventiva decretada;
- “Terrorista fere e morre metralhado“, em 4/4/1970, sobre a morte de Dorival Ferreira;
- “Fim do sequestro: 4 bandidos na Argélia“, de 16/6/1970, sobre a troca de presos políticos pelo embaixador alemão;
- “Chantagem sexual é arma do terror“, de 28/7/1971, sobre a militante Solange Lourenço Gomes, que se entregou à repressão em março daquele ano, e que, anos mais tarde, se suicidou;
- “Terror mata e rouba em hospital carioca“, de 3/9/1971, sobre o assalto à clínica Dr. Eiras por militantes de esquerda;
- “Amor, fé e orgulho. Para sempre Brasil“, de 8/9/1971, sobre as paradas militares do dia anterior;
- “Lamarca deixou 2,5 milhões de dólares“, de 2/9/1971, acerca da morte de Carlos Lamarca;
- “Eis os assassinos e inimigos do povo“, de 28/9/1971, com fotos dos militantes procurados;
- “DOPS paulista desmascara infiltração comunista“, de 23/1/1975, divulgando 15 indiciados na Lei de Segurança Nacional.
O padrão manteve-se nos quinze anos de gestão de Antônio Aggio à frente da Folha da Tarde, de 1/7/1969 a 7/5/1984. Ainda na véspera da votação da emenda Dante de Oliveira, na plenária de 25/4/1984, pelas “Diretas Já”, todos os jornais do país noticiaram a intimidação que o general Newton Cruz realizou, fazendo exercícios militares e cercando o Congresso Nacional com tropas da PM, do fim da tarde até às 21 horas. O general Cruz, ex-chefe do SNI, era, desde agosto de 1983, responsável pelo Comando Militar do Planalto e da 11ª Região Militar, com sede em Brasília, além de executor de medidas de emergência. Usando desse instrumento, o general declarou ter antecipado o esquema de segurança em 24 horas, para evitar o acesso não autorizado ao Congresso. No entanto, o cerco se deu após oitocentos estudantes terem se concentrado no saguão para uma vigília cívica até a votação. Para a Folha da Tarde, todo o episódio não passou de um teste de adestramento.
Quando jornalistas e policiais se confundem
A Folha da Tarde foi um porta-voz e, como tal, ficou conhecida como o Diário Oficial da Oban por reproduzir informes do governo como se fossem matérias feitas pelo próprio jornal. As imagens, construídas para além da verdade dos fatos, ditavam uma direção de raciocínio. Esses foram os “serviços prestados” pelo jornal, de julho de 1969 a 7/5/1984. O grande poder da Folha da Tarde, segundo Aggio, estava na sua alta vendagem. Se esse foi um dos motivos que justificaram a linha policialesca durante a década de 1970, em meados dos anos de 1980 a realidade começou a se alterar.
Na perspectiva de Carlos Brickman, “(…) quando o grupo de Aggio deixou de vender jornal, caiu. A meu ver, Boris Casoy definiu a coisa com mais precisão: a Folha da Tarde era de extrema direita porque o regime era de extrema direita. Se o regime fosse de extrema esquerda, a Folha da Tarde seria igualzinha, com os mesmos dirigentes, e seria de extrema esquerda. Na verdade, a Folha da Tarde era o jornal da Polícia. Se a Polícia fosse a Gestapo, como a nossa parecia aspirar ser, seria Gestapo. Se fosse KGB, seria KGB numa boa, sem problemas. Não havia, no direitismo da Folha da Tarde, nenhuma raiz econômica: era apenas a supremacia da ordem que valia”.11
O destino do jornal já estava, porém, selado. Em meados de abril de 1984, Antônio Aggio foi invitado à sala de Octávio Frias de Oliveira, onde também estava o filho. Não havia, segundo os donos do jornal, mais espaço para aquela Folha da Tarde no prédio da Barão de Limeira. Na primeira sexta-feira de maio, dia 4 — pouco mais de uma semana depois da derrota das “Diretas Já” —, Antônio Aggio assinou um longo artigo de página inteira. Contrariando o acordado, em uma espécie de editorial intitulado “Plebiscito e referendo, instrumentos de salvação nacional”, com charges, citações da Constituição de 1967, análises políticas e definições de Estado e democracia, ficavam patentes as sincronias da Folha da Tarde com os novos rumos da empresa.
Na sua versão, Aggio deixou o jornal depois de escrever essa sua “carta de princípios”, e não porque, para o Grupo Folha, ele simbolizava um passado que devia sair de cena e ser esquecido. O país buscava novos ares, e a Folha de S. Paulo se engajara em informar o público leitor sedento dessas informações. Assim, era definitivamente imprescindível retirar os “tiras” da redação. Eles eram um dos símbolos de um Brasil obsoleto e, como a anistia era recíproca, não se julgariam também os seus atos.
Em seu último dia de jornal, 7/5/1984, Aggio publicou uma pequena nota despedindo-se de seu público, que vinha rareando, e agradeceu à sua equipe “aguerrida que sempre praticou a lealdade acima de tudo”. Novamente são as vendas que justificam as mudanças da Folha da Tarde. O futuro na Folha da Manhã tornou Aggio um repórter especial da Agência Folha, da qual se aposentou em 1986. Enquanto policial, manteve o vínculo empregatício na Secretária de Segurança Pública. O delegado Sequeira também continuou no jornal até 1988, dirigindo a Internacional. Do antigo trio, Horley Antônio Destro engajou-se no mercado publicitário.
No caso da Folha da Tarde, os jornalistas responsáveis, íntimos do círculo policial repressivo, trocaram intencionalmente a narrativa de um acontecimento pela publicação de versões que corroborassem o ideário autoritário oficial. Certamente, acreditavam em suas ações, compactuando sempre com o poder vigente. A essa atitude se pode dar o nome de autocensura, como também colaboração.
Fiéis aos seus “donos”, esses cães de guarda farejaram uma brecha, protegeram uma suposta morada e, principalmente, ao defender o castelo, venderam à sociedade uma imagem errônea. Quando o “tabuleiro do poder” modificou-se, muitos desses servidores foram aposentados, outros construíram para si uma imagem positiva e até mesmo heróica, distanciando-se do que haviam feito. Outros tantos se readaptaram e permaneceram trabalhado nas mídias como sempre. De todos esses esquemas e estruturas para perder poucos anéis, algo deve ser sublinhado. O jornal, impresso ou televisionado, é um produto que vende um serviço, a informação, comprada pelos leitores. Assim, muitos pagaram pelo jornal impresso para saberem o que se passava nos seus mundos. Outros sofreram com o que estava impresso no jornal, mesmo que no dia seguinte este tenha virado simples papel de embrulho de peixe nas feiras.
Ponderações finais
Retomando as ponderações sobre o processo que culminou com a Anistia decretada em 1979, e tendo em perspectiva a forma aparentemente pacífica de interrupção da circulação da Folha da Tarde como modelo, tem-se a impressão de que tudo tomou seu lugar, apaziguando dilemas, o que pode causar desconforto para quem não aceitou enquadrar-se à “nova ordem social”, particularmente os familiares de mortos e desaparecidos. Por isso, é importante sublinhar o tom dessa transição, tanto na Folha da Tarde, como no país. Uma transição que garantiu a manutenção do controle às elites econômicas, reafirmando a apregoada tradição conciliatória da política brasileira.
Temas dessa natureza costumam ser tão caros e complexos — conciliar, negando a dor, e reafirmar sempre uma herança democrática brasileira — que as imagens fortes desfocam a análise dos fatos, sobretudo aqueles que não interessam aos “donos do poder”. Quase sempre vistas como meros dados, algo intrínseco à narrativa superficial, as raízes democráticas do país são sublinhadas constantemente para interpretar os períodos de arbítrio como exceções.
Por esse raciocínio, aparar arestas sem exorcizar fantasmas é um preço que deveria ser pago para preservar a “inquestionável democracia”. Varre-se a sujeira para debaixo do tapete, a fim de manter a impressão da sala limpa. Por esse olhar, os crimes não existiriam ou seriam passíveis de perdão. Tudo em nome da preservação de um sistema político estrábico, de olhar enviesado para as desigualdades sociais e envolto também em fragilidade. Qualquer ação, assim, poderia desestabilizar a democracia, jamais compreendida como conquista, mas como concessão, deitada em (nosso) berço esplêndido.
Questões atualíssimas no presente nos levam a refletir sobre o papel da imprensa, seja nas democracias, nas ditaduras ou nos processos que levam a uma ou a outra. Existem muitos veículos de comunicação país afora que ainda não mereceram uma análise robusta sobre suas trajetórias. Há um vasto campo a ser desbravado. Quanto menos investigações, mais fácil a construção de negacionismos.
O estudo que deu origem a Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 reuniu um acervo de 60 entrevistas com jornalistas e censores, realizadas no período de 1996 a 2001, as quais constituíram o texto de minha tese de doutorado, defendida em novembro de 2001 no PPGH/UNICAMP. Nela, não foram consultados ou utilizados bancos de entrevistas de projetos empresariais de memória, onde os depoimentos carregam um tom “chapa-branca”. Estive com cada um dos entrevistados e por vezes, encontrei-os em mais de uma ocasião. Debrucei-me sobre conjuntos documentais que estavam sendo disponibilizados naquele momento em diversas instituições, como os do Arquivo Nacional (RJ e Brasília), DPF (incluindo a Academia Nacional de Polícia), e os Arquivos Públicos Estaduais do Rio de Janeiro e de São Paulo. As conclusões formuladas foram reconhecidas para auxiliar tanto a Comissão Nacional da Verdade, sendo citadas em seu relatório, quanto a Comissão Estadual da Verdade (CEV) “Rubens Paiva”. Atualmente, este estudo auxilia o MPF-SP na investigação sobre a participação empresarial no pós-1964. Assim, concluo me utilizando da sugestão amiga de um jornalista/professor, leitor crítico, que usando livremente a famosa frase de um dramaturgo alemão me disse: aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um inconsequente.
Notas
- Cláudio Abramo, A regra do jogo: o jornalismo e a ética do marceneiro. São Paulo, Companhia das Letras, 1988. ↩︎
- Gostaria de sublinhar que utilizo esse termo porque compreendo as atitudes tomadas como algo mais que uma adesão aos pressupostos do pós-1964 e principalmente do pós-1968. Além de apoio também é compromisso, por isso colaborar tornou-se mais acertado do que aderir. ↩︎
- No dia 21/3/1999, a Folha da Tarde circulou pela última vez. Fazendo um balanço dos 43 anos de atividade, a matéria descreveu que “nos anos [de 19]70, [o jornal teria mudado o] seu perfil, tornando-se mais conservador, em consonância com as demandas do eleitorado da época”. ↩︎
- Maurício Maia, O juízo da morte: a violência letal dolosa nas páginas de Notícias Populares e no Tribunal do Juri de São Paulo, 1966-1975. São Paulo, tese de doutoramento, ECA-USP, 2004. ↩︎
- Depoimentos à autora, por e-mail, em 18 a 22/5/2000. ↩︎
- Depoimentos à autora, por e-mail, em 18 a 22/5/2000. ↩︎
- Alípio Freire, Izaías Almada e J. A. de G Ponce. (orgs.). (1997). Tiradentes: um presídio da ditadura (memória de presos políticos). São Paulo, Scipione, p.42. ↩︎
- Entrevista à autora, em 3/5/2000. ↩︎
- Entrevista à autora, em 7/7/1999. ↩︎
- Entrevista à autora, em 18/3/1999. ↩︎
- Entrevista à autora, em 21/4/1999. ↩︎
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Beatriz Kushnir é historiadora, doutora em História pela Unicamp, e autora, entre outros de, Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 (Boitempo, 2004).
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