EUA com Trump: maior paraíso fiscal global (por Joseph Stiglitz)
Fernando Nogueira da Costa*, Blog Cidadania e Cultura
Joseph Stiglitz, ex-economista-chefe do Banco Mundial e ex-presidente o Conselho de Assessores Econômicos da presidência dos EUA, é professor na Universidade Columbia e prêmio Nobel de Economia.
Seu livro mais recente é “The Road to Freedom: Economics and the Good Society”.
Abaixo, o artigo de Joseph Stiglitz, citado no título
EUA com Trump: maior paraíso fiscal global
A passos rápidos, Donald Trump está transformando os Estados Unidos no maior paraíso fiscal da história. Basta ver:
- a decisão de Departamento do Tesouro de se retirar do regime de transparência que compartilha as identidades reais de donos de empresas;
- o abandono pelo governo das negociações para estabelecer uma Convenção de Cooperação Tributária Internacional das Nações Unidas;
- sua recusa em fazer cumprir a Lei Contra Práticas Corruptas Estrangeiras; e
- a desregulamentação em massa dos criptoativos.
Isso parece ser parte de uma estratégia maior para enfraquecer 250 anos de salvaguardas institucionais.
O governo Trump tem infringido tratados internacionais, ignorado conflitos de interesse, desmantelado os freios e controles do sistema e retido fundos aprovados pelo Congresso.
O governo não está debatendo políticas governamentais. Está pisoteando o Estado de Direito.
No entanto, Trump de fato adora um tipo de imposto: as tarifas de importação.
Ele parece acreditar que são os estrangeiros que pagam a conta, proporcionando assim o dinheiro para cortar os impostos sobre os bilionários.
Também parece acreditar que essas tarifas eliminarão os déficits comerciais e trarão de volta atividades industriais aos EUA.
Não importa que as tarifas sejam pagas pelos importadores, elevando os preços internos, e que estejam sendo aplicadas no pior momento possível, justo quando os EUA ainda se recuperam de um episódio inflacionário.
Além disso, a macroeconomia elementar mostra que déficits comerciais multilaterais são reflexo do desequilíbrio entre a poupança interna e o investimento interno.
Os cortes dos impostos sobre os bilionários planejados por Trump ampliarão essa diferença, pois os déficits reduzem a poupança interna nacional.
Portanto, por ironia, políticas como os cortes dos impostos sobre os ricos e grandes empresas elevam o déficit comercial.
Desde Ronald Reagan, os conservadores argumentam que cortes de impostos pagam a si mesmos ao impulsionar o crescimento econômico. No entanto, isso não funcionou dessa forma nem com Reagan nem com Trump em seu primeiro mandato.
Pesquisas empíricas confirmam que os cortes dos impostos sobre os ricos não têm impacto mensurável no crescimento ou no desemprego, mas aumentam de forma imediata e persistente a desigualdade de renda.
A proposta de estender a Lei de Empregos e de Corte de Impostos de 2017, o maior corte de impostos sobre pessoas jurídicas da história dos EUA, acrescentaria cerca de US$ 37 trilhões à dívida nacional nos próximos 30 anos, sem proporcionar o impulso econômico prometido.
Trump está agravando o déficit comercial, também, na esfera microeconômica. Os EUA se tornaram uma economia de serviços.
Entre suas maiores exportações estão o turismo, a educação e a saúde, mas Trump tem sistematicamente enfraquecido cada uma dessas áreas.
Que turista, estudante ou paciente gostaria de vir aos EUA sabendo que pode ser detido arbitrariamente e mantido preso por semanas?
O enfraquecimento de instituições educacionais de primeiro nível, o cancelamento arbitrário de vistos estudantis e o corte do financiamento a pesquisas científicas lançaram uma grande sombra sobre esses setores vitais.
Essa abordagem estratégica falha já está saindo pela culatra.
A China é um dos maiores parceiros comerciais dos EUA, e o país depende dos chineses para diversas importações críticas.
A China já retaliou. O temor de uma estagflação tem abalado os mercados. E isso é só o começo.
Graças ao Departamento de Eficiência Governamental, de Elon Musk, a arrecadação com impostos pode desabar mais de 10% em 2025, em razão da redução na fiscalização e no cumprimento das leis.
O corte de cerca de 50 mil funcionários do IRS resultaria em uma perda de US$ 2,4 trilhões em arrecadação nos próximos dez anos, em comparação com o aumento de US$ 637 bilhões projetado nas provisões da Lei de Redução da Inflação, que previa ampliar o quadro pessoal do órgão.
A agenda é clara: não apenas reduzir os impostos sobre os ricos, mas também enfraquecer a aplicação da lei.
Em um mundo em que o capital e as pessoas ricas conseguem atravessar fronteiras com facilidade, a cooperação internacional é a única forma para que os governos garantam uma tributação justa das empresas multinacionais e indivíduos ultrarricos.
Nesse contexto, suspender a fiscalização da coleta de dados sobre os donos reais das empresas, tolerar mercados de criptoativos que promovem o anonimato e abandonar o processo de criação de uma nova convenção tributária da ONU e de um imposto mínimo mundial revelam um padrão deliberado: o desmantelamento de estruturas multilaterais criadas para combater a evasão fiscal e a lavagem de dinheiro.
A “pausa” na aplicação da Lei Contra Práticas de Corrupção no Exterior indica que os EUA já não se importam nem com subornos e propinas.
Testemunhamos uma tentativa de Trump, Musk e bilionários aliados estabelecer um capitalismo moldado nas zonas sem lei do mundo offshore.
Não é apenas uma revolta contra os impostos; é um ataque a qualquer lei que ameace a acumulação extrema de riqueza e poder.
Estamos testemunhando uma tentativa de Trump, Musk e seus aliados bilionários de estabelecer uma espécie de capitalismo moldado nas zonas sem lei do mundo offshore.
Não se trata apenas de uma revolta contra os impostos; é um ataque total a qualquer lei que ameace a acumulação extrema de riqueza e poder.
Nada deixa isso mais evidente do que a forma como eles abraçaram os criptoativos. O crescimento explosivo de bolsas de criptoativos pouco regulamentadas, cassinos on-line e plataformas de apostas tem impulsionado a economia ilícita mundial.
No governo Trump, o Departamento do Tesouro suspendeu sanções e regulamentações sobre plataformas que obscurecem transações.
Trump chegou até a assinar um decreto executivo para estabelecer uma “reserva estratégica de criptomoedas” e promoveu a primeira “cúpula cripto” da Casa Branca.
Trump, que lançou, ele próprio, uma controversa moeda “meme” e pode em breve lançar um videogame baseado no “Banco Imobiliário” e nas criptomoedas, agora colocou uma pessoa que faz parte do mundo dos criptoativos para comandar a Securities and Exchange Commission (SEC). Paul Atkins é membro de um grupo setorial de defesa dos criptoativos e dos sistemas financeiros não bancários.
As criptomoedas se tratam de uma única coisa: o sigilo.
Já temos moedas perfeitamente boas no dólar, no iene e no euro, entre outras. E temos plataformas de negócios eficientes para comprar bens e serviços.
A demanda por criptomoedas provém do desejo de esconder o dinheiro. Pessoas que participam de atividades ilícitas, como lavagem de dinheiro e sonegação fiscal, não querem que seu dinheiro seja rastreado com facilidade.
O restante do mundo não pode ficar parado assistindo.
Já vimos que a cooperação internacional pode funcionar, como mostra o imposto mínimo global de 15% sobre os lucros de multinacionais, que mais de 50 países estão agora adotando.
No G20, o consenso obtido em 2024 sob a liderança do Brasil defende que os muito ricos paguem sua parte justa.
Os EUA têm se afastado de acordos internacionais, mas, paradoxalmente, a ausência da diplomacia americana pode ajudar a fortalecer as negociações multilaterais para que tragam resultados mais ambiciosos.
No passado, os EUA exigiam que os acordos fossem enfraquecidos (normalmente para beneficiar um interesse especial ou outro) mas, no fim, se recusavam a assiná-los.
Foi o que ocorreu durante as negociações da OCDE sobre a tributação das multinacionais.
Agora, o resto do mundo pode seguir em frente com a tarefa de criar uma arquitetura tributária global justa e eficiente.
Combater a desigualdade extrema por meio da cooperação internacional e de instituições inclusivas é a verdadeira alternativa à ascensão do autoritarismo.
O isolamento autoimposto dos EUA cria uma oportunidade para reconstruir a globalização com base em fundamentos verdadeiramente multilaterais – um “G-menos-um” para o século XXI.
*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP.
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